quarta-feira, 24 de dezembro de 2008

Um novo começo.

                                                                                                                                                                        (parte I)
 
 Quarta-feira, 24 de dezembro de 2008
coluna Empresa-Cidadã
Paulo Márcio de Mello

 Um novo começo representa o maior desafio jamais enfrentado pela Humanidade e a conciliação com o Planeta é o horizonte deste caminho. Novos estatutos éticos, capazes de religar o Homem com a sua casa precisam ser construídos. Os valores ainda hoje predominantes posicionaram o Homem no topo de uma escala que deixou resíduos de arrogância discriminatória em relação ao próprio Homem e às outras expressões da Vida.

Um importante estatuto ético surgiu na histórica Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano, a Declaração de Estocolmo, de junho de 1972. A Declaração de Estocolmo sobre o Ambiente Humano ainda era uma consideração arrogante, relativa a uma centralidade do Homem e subordinação da Natureza, na condução dos esforços do reposicionamento necessário. Tinha, no entanto, o mérito de reconhecer, entre outros aspectos, o impacto da escala sem precedentes na transformação do Ambiente, bem como a essencialidade do Ambiente para o gozo de direitos humanos fundamentais, a começar pelo direito à vida.

A Declaração peca por estabelecer algumas dissociações indesejáveis, como nos casos do desejo dos povos pela melhoria e proteção ambientais e na exclusividade dos governos na condução desta tarefa, ou na consideração de que haveria problemas ambientais de ricos e de pobres, ou também na concepção de que existem interesses excludentes entre gerações atual e futuras, ou ainda na crença mítica da capacidade do desenvolvimento econômico de ensejar melhor qualidade de vida.

São percepções ainda hoje entranhadas profundamente em nossos valores, que decorrem mais de interesses políticos de busca de hegemonia do que de evidências históricas. Vinte e seis princípios dão forma à Declaração de Estocolmo, constituindo-se em um estatuto ético avançado para as circunstâncias de então.

O primeiro princípio refere-se ao Homem como titular do direito fundamental “à liberdade, à igualdade e ao desfrute de condições de vida adequadas, em um meio ambiente de qualidade tal que lhe permita levar uma vida digna, gozar de bem-estar”, sendo portador “solene de obrigação de proteger e melhorar o meio ambiente, para as gerações presentes e futuras.”

Ainda no Princípio 1, mencionava-se que “as políticas que promovem ou perpetuam o ‘apartheid’, a segregação racial, a discriminação, a opressão colonial e outras formas de opressão e de dominação estrangeira permanecem condenadas e devem ser eliminadas.” Curiosamente, mais do que hoje, o mundo era povoado de ditaduras, inclusive o Brasil, que assinaram contra a dominação “estrangeira”, mas calaram diante da dominação, como se também neste caso pudesse haver uma dicotomia.

A concepção de que o Homem paira fora deste sistema verifica-se nos Princípios 3 e 4, especialmente neste, atribuindo ao Homem “a responsabilidade especial de preservar e administrar judiciosamente o patrimônio representado pela flora e fauna silvestres, bem assim o seu habitat” reconhecendo que se já encontravam “em grave perigo por uma combinação de fatores adversos.”

O mito da concepção do desenvolvimento está expresso no Princípio 8, que menciona que o “desenvolvimento econômico e social é indispensável para assegurar ao homem um ambiente de vida e trabalho favorável e criar, na Terra, as condições necessárias à melhoria da qualidade de vida.”

Outra concepção questionável está expressa no Princípio 16, que diz que “As regiões em que exista o risco de que a taxa de crescimento demográfico ou as concentrações excessivas de população, prejudiquem o meio ambiente ou o desenvolvimento, ou em que a baixa densidade de população possa impedir o melhoramento do meio ambiente humano e obstar o desenvolvimento, deveriam ser aplicadas políticas demográficas que representassem os direitos humanos fundamentais e contassem com a aprovação dos governos interessados.”

O princípio inverte significados, omitindo o impacto gravíssimo dos padrões de produção, distribuição, financiamento e consumo a que alguns países chegaram e que a crise econômica presente é exemplo, e ressaltando o aspecto “apenas” grave, e politicamente menos indigesto para as economias hegemônicas, dos aspectos demográficos.

Outros estatutos éticos foram concebidos, contribuindo para recolocar pouco a pouco o Homem como parte dos ecossistemas, a eles subordinado. Em colunas próximas, abordaremos alguns deles. Antes, no entanto, é Natal. Então, um Bom Natal!

(continua)

Um novo começo.

(parte II)

Quarta-feira, 31 de dezembro de 2008
coluna Empresa-Cidadã
Paulo Márcio de Mello

 Dois estatutos éticos importantes, que procuram religar o Homem com o planeta, sucederam a Declaração de Estocolmo, resultado da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano, de junho de 1972.

Um deles, mais conhecido como relatório Brundtland, foi apresentado pela Comissão Mundial sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento (ONU - UNCED), em 1987. A comissão, presidida pela Dra Gro Harlem Brundtland e por Mansour Khalid, apresentou o texto, oficialmente chamado de “Our Common Future”.

Nele, foi consagrado o conceito de desenvolvimento sustentável, o “desenvolvimento que satisfaz as necessidades do presente sem comprometer a capacidade de as futuras gerações satisfazerem suas próprias necessidades".

O conceito, muito difundido nesta versão adocicada, foi apurado a partir da contabilização das necessidades essenciais, prioritariamente as das populações mais pobres, uma das origens às críticas a ele formuladas.

Critica-se o relatório Brundtland, por complacência com o modo de produção vigente e timidez ao não estipular limites máximos para a exploração dos recursos naturais do planeta, ao contrário de outros importantes relatórios que o precederam, como o conhecido relatóri o “Os Limites do Crescimento”, publicado em 1972, realizado por uma equipa do Massachusetts Institute of Technology (MIT), coordenada por Donella e Dennis Meadows, a pedido do Clube de Roma (1968).

Possivelmente, a maior vulnerabilidade do conceito de desenvolvimento sustentável é a da sua definição ainda encarcerada na sequência da construção do conceito colonizador do desenvolvimento econômico. Apesar de propor uma nova era de crescimento, não critica o significado perverso das etapas inevitáveis para a construção do processo de crescimento, incompatíveis com o propósito do desenvolvimento sustentável.

Além disso, a divulgação do conceito de desenvolvimento sustentável, quase sempre restrita à parte do texto edulcorada como satisfação das necessidades do presente, sem prejuízos para a satisfação das necessidades das próximas gerações, omite alguns princípios mais críticos do relatório.

Entre muitos aspectos de qualidade omitidos na difusão do conceito de desenvolvimento sustentável, está o da referência implícita à eficácia inerente à tomada coletiva de decisões, ou à necessidade do sentido distributivo do crescimento, ou ainda o entendimento deste como um fenômeno predominantemente político.

O relatório tem o saldo meritório de estabelecer requisitos para a harmonia com a Natureza, contribuindo para a visão em que o Homem é elemento indissociável de um sistema, cujo equilíbrio e harmonia precisam ser perseguidos.

A Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, realizada no Rio de Janeiro (RJ), em junho de 1992, através da Declaração do Rio de Janeiro sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável, reiterou a Declaração de Estocolmo, de 1972. Ultrapassou-a, ao ressaltar a integridade do sistema global de meio ambiente e desenvolvimento e reconhecer a natureza integral e interdependente da Terra.

Entre 27 princípios, o primeiro refere-se ao direito humano a uma vida saudável e produtiva, em harmonia com a natureza. O conceito de desenvolvimento sustentável permeia a Declaração do Rio de Janeiro que, até o décimo princípio, reproduz os aspectos do relatório Brundtland. Além disso, atribui aos Estados predominantemente e aos indivíduos, complementarmente, o zelo pela proteção ambiental.

Uma das mais importantes contribuições da Declaração do Rio de Janeiro é a de consagrar as responsabilidades pelas economias externas, também conhecidas como externalidades, aspecto central nas políticas públicas ambientais e de responsabilidade social.

O Princípio 16 afirma assim que “as autoridades nacionais devem procurar promover a internacionalização dos custos ambientais e o uso de instrumentos econômicos, tendo em vista a abordagem segundo a qual o poluidor deve, em princípio, arcar com o custo da poluição, com a devida atenção ao interesse público e sem provocar distorções no comércio e nos investimentos internacionais.

A Declaração do Rio de Janeiro, de 1992, contribuiu para o interesse pelo futuro do planeta, ressaltando a relação entre desenvolvimento sócio-econômico e modificações no meio ambiente.

Feliz 2009!

(continua)

Um novo começo.

(parte III)
 

Quarta-feira, 7 de janeiro de 2009
coluna Empresa-Cidadã
Paulo Márcio de Mello

A Carta da Terra é o quarto documento que mencionamos, após a Declaração de Estocolmo sobre o Ambiente Humano (1972), o relatório Nosso Futuro Comum (ou relatório Brundtland, 1987) e a Declaração do Rio de Janeiro sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (1992), como estatutos éticos para iluminar o caminho de religar o Homem com a Natureza.

Sua edição foi inspirada pela Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento das Nações Unidas (ou Comissão Brundtland, 1983-1987), ao recomendar uma declaração universal sobre proteção ambiental e desenvolvimento sustentável, na forma de uma "nova carta".

A Conferência Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento do Rio de Janeiro (1992) sugeriu a meta de criar uma Carta da Terra. Entretanto, os Estados representados não chegaram a este acordo, adotando então a Declaração do Rio de Janeiro sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável.

Em 1994, Maurice Strong (presidente do Conselho da Terra) e Mikhail Gorbachev (presidente da Cruz Verde Internacional) lançaram uma iniciativa da sociedade civil para redigir uma Carta da Terra. Em 1997, ao final do Fórum Rio+5, no Rio de Janeiro, um texto de referência foi liberado, até que, em 2000, a Carta da Terra foi lançada, em Haia.

A Carta da Terra, no Preâmbulo, menciona que “no meio de uma magnífica diversidade de culturas e formas de vida, somos uma família humana e uma comunidade terrestre com um destino comum.” Consagra-se o princípio de que, apesar de variarem as formas, o destino dos diversos é o mesmo.

O título seguinte, “Terra, Nosso Lar”, subordina a Humanidade como “parte de um vasto universo em evolução”, importante contribuição para ultrapassar a concepção de que existiria uma supremacia do Homem sobre outras formas de Vida.

Segue o título “A Situação Global”, crítico, apesar de inconsistências. É o caso do reconhecimento de que os padrões dominantes de produção e consumo são causas da devastação ambiental e da redução dos recursos. Inconsistente ao concluir que o “crescimento sem precedentes da população humana tem sobrecarregado os sistemas ecológico e social.” Alivia assim o peso dos padrões de produção e consumo, sobrecarregando o aspecto demográfico, importante, mas subalterno.

O título “A Situação Global” oferece inconsistências também ao apontar que os “benefícios do desenvolvimento não estão sendo divididos eqüitativamente e o fosso entre ricos e pobres está aumentando”, mas omite que o conceito de desenvolvimento carrega inevitavelmente estas conseqüências. Segue o título “Desafios Para o Futuro”, compreensivelmente otimista ao apontar que, juntos, “podemos forjar soluções includentes.”

O último título introdutório, “Responsabilidade Universal”, refere-se ao “espírito de solidariedade humana e de parentesco com toda a vida”, fortalecido ao reverenciar com humildade o lugar que ocupa o Ser Humano na Natureza.

Outra significativa contribuição da Carta da Terra, expressa no sétimo princípio, é a recomendação de transferência total dos custos ambientais e sociais para os preços de venda dos bens e serviços. Trata-se de um aspecto de equidade econômica, onerando os beneficiários finais dos bens e serviços por economias externas negativas dos processos produtivos, fator geralmente negligenciado e que acentua as desigualdades.

O último título, “O Caminho Adiante”, reitera as responsabilidades de liderança compartilhada por indivíduos, famílias, comunidades, artes, ciências, religiões, instituições educativas, meios de comunicação, empresas, organizações não-governamentais e governos na busca de “caminhos para harmonizar a diversidade com a unidade, o exercício da liberdade com o bem comum, objetivos de curto prazo com metas de longo prazo.

Esta é uma trilha em que vão evoluindo as referências éticas, a partir de uma percepção antropocêntrica, do Homem dissociado da Natureza, herança da cultura derivada das religiões abraâmicas (Judaísmo, Cristianismo e Islamismo).

Quando Abraão foi poupado pelo Criador de oferecer o próprio filho, o favorito, em sacrifício, substituindo-o por um carneiro, instituiu o significado de dissociar o Homem (o filho) da Natureza (o carneiro), com predominância na escala de valores, restando à Natureza servir o Homem, até a morte.

Os avanços em relação ao incômodo desta percepção dissociada chegarão quando outra percepção, sistêmica, em que o Homem figura como elemento da Natureza, não mais acima dela, estiver estabelecida.

paulo márcio de mello
paulomm@paulomm.pro.br
Professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)

A coluna EMPRESA-CIDADÃ é publicada, desde 2001,
toda quarta-feira, no jornal Monitor Mercantil (www.monitormercantil.com.br).
Através dela, são apresentados conceitos relativos à responsabilidade social,
casos de empreendedores e empresas, pesquisas, resenhas ou agenda.