Os novos “navios tumbeiros”.
A
complacência com práticas como as de roubar e furtar,
considerando-as culturais e, portanto, aceitáveis,
mesmo que
dentro de limites,
tem importantes
implicações econômicas,
como
influenciar na concentração da renda e da riqueza,
na
produtividade e rentabilidade, ou
na
sustentabilidade.
blog do professor paulo márcio
economia&arte
coluna EMPRESA-CIDADÃ
Quarta-feira, 20 de maio de 2015
Paulo Márcio de Mello*
◙ "Sustentabilidade
significa a integração ininterrupta e amparada do nosso modelo de negócios na
comunidade. Significa estabelecer um contrato de longo prazo com propósito de
agregar valor à sociedade”. Esta é a definição de “sustentabilidade” de Pablo
Isla. Salvo erro de tradução, não pode ser mais inespecífica.
◙ Na
genialidade inesquecível de Chico Anísio, na “Escolinha do Professor Raimundo”,
poderia perfeitamente constar de um diálogo entre o professor, representado pelo
próprio Chico Anísio, e a personagem Rolando Lero, representada por Rogério
Cardoso.
◙ Mas
quem é o autor assumido da definição, Pablo Isla? Trata-se do poderoso principal
executivo do grupo espanhol Inditex, detentor das marcas Pull&Bear, Massimo
Dutti, Bershka, Stradivarius, Oysho, Uterqüe, Zara Home e Zara. Como os nomes
sugerem, marcas de requintadas mercadorias, vendidas em lojas elegantemente
instaladas nas principais praças comerciais do planeta.
◙ O
lema do grupo é “pronto para usar”, em tradução livre (“Right to wear”, www.inditex.com). Na página do grupo, há louvações à
sustentabilidade, como “a base de todas as nossas decisões de negócios. Nós nos
esforçamos para oferecer aos nossos clientes produtos seguros e éticos que são
feitos de forma a respeitar o ambiente e a sociedade no sentido mais amplo”.
◙ Sem
especificar como, o lema desdobra-se em um amplo leque de interferências nas
práticas corporativas, como gestão da sustentabilidade, zelo pelos padrões dos
produtos que assegurem a saúde e segurança dos clientes, responsabilidade e
trabalho a serviço dos clientes, zelo pelas práticas de responsabilidade na
cadeia de valor, investimento social de forma a estreitar os laços com as
comunidades com que faz negócios, e considerar os aspectos ambientais em todas
as práticas de negócios. Tudo bem inespecífico.
◙ Específico
mesmo é o descumprimento do Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), firmado em
2011 para sanear as degradantes condições de trabalho que levaram a Zara a se utilizar
de trabalho assemelhado a trabalho escravo, em sua cadeia de valor.
◙ De
acordo com o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), 67 fornecedores da Zara
foram auditados, o que resultou em 433 irregularidades verificadas. Entre as
irregularidades, foram registradas excesso de jornada de trabalho, atraso nos
pagamentos, acidentes, uso de trabalho infantil, discriminação por impedimento
de utilização de imigrantes na produção, entre outros. A autuação pode resultar
em multas da ordem de R$ 25 milhões.
◙ Em 2011,
a Zara foi autuada por manter 15 trabalhadores bolivianos e peruanos em
condições de trabalho análogas à de trabalho escravo em oficina de costura.
Precariedade das condições de higiene, servidão por dívidas contraídas e
jornada de trabalho excessiva.
◙ De lá
para cá, as irregularidades persistem, sem a prometida adoção de medidas
saneadoras. Na cadeia de fornecedores, foram identificadas 22 empresas com
registro de jornada excessiva, e 23 com descontos não recolhidos ao Fundo de
Garantia pelo Tempo de Serviço (FGTS).
◙ O
relatório da Superintendência Regional do MTE indica ainda que empresas que
utilizavam trabalhadores bolivianos foram excluídas da cadeia de fornecedores,
caracterizando-se atitude discriminatória com restrição de acesso ao trabalho
por origem ou etnia do trabalhador. Foram fechados ainda cerca de 3,2 mil
postos de trabalho, em consequência da fuga de fornecedores para outros
estados, a fim de escapar da fiscalização.
◙ Nos
dez últimos anos cobertos pelas estatísticas divulgadas pelo Ministério Público
do Trabalho (http://portal.mte.gov.br/data), de 2004 a 2013, foram resgatados 35.362
trabalhadores da condição de trabalho em condições análogas à de trabalho
escravo no Brasil.
◙ “Navios
negreiros” ou “navios tumbeiros” eram os nomes dados às embarcações que
transportavam os escravos originários da África para o Brasil. O lucrativo comércio
de escravos enriqueceu também os donos deste tipo de transporte. As
embarcações, desenvolvidas para este fim, eram carregadas de um contingente
excessivo de pessoas, para compensar as grandes perdas, que as condições desumanas
de saúde, higiene e segurança determinavam.
◙ Os
novos “navios tumbeiros”, com grife e requinte, arrastam até os nossos dias as lucrativas
práticas escravistas, dissimuladas pelo discurso inespecífico e pelo brilho das
vitrines, nos mais sofisticados endereços das capitais do mundo.
Paulo Márcio de
Mello
paulomm@paulomm.pro.br
Professor da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)
A coluna
EMPRESA-CIDADÃ é publicada, desde 2001, toda quarta-feira,
no centenário
jornal Monitor Mercantil (www.monitormercantil.com.br).
São mais de 600
edições apresentando casos de
empreendedores e empresas,
pesquisas,
resenhas, editais ou agenda, relativos à sustentabilidade,
à responsabilidade
social e ao desenvolvimento sustentável.