quarta-feira, 20 de maio de 2015

Os novos “navios tumbeiros”.
                                                                              
A complacência com práticas como as de roubar e furtar,
considerando-as culturais e, portanto, aceitáveis,
mesmo que dentro de limites,
tem importantes implicações econômicas,
como influenciar na concentração da renda e da riqueza,
na produtividade e rentabilidade, ou
na sustentabilidade.

blog do professor paulo márcio
economia&arte


coluna EMPRESA-CIDADÃ
Quarta-feira, 20 de maio de 2015
Paulo Márcio de Mello*


◙       "Sustentabilidade significa a integração ininterrupta e amparada do nosso modelo de negócios na comunidade. Significa estabelecer um contrato de longo prazo com propósito de agregar valor à sociedade”. Esta é a definição de “sustentabilidade” de Pablo Isla. Salvo erro de tradução, não pode ser mais inespecífica.

◙       Na genialidade inesquecível de Chico Anísio, na “Escolinha do Professor Raimundo”, poderia perfeitamente constar de um diálogo entre o professor, representado pelo próprio Chico Anísio, e a personagem Rolando Lero, representada por Rogério Cardoso.

◙       Mas quem é o autor assumido da definição, Pablo Isla? Trata-se do poderoso principal executivo do grupo espanhol Inditex, detentor das marcas Pull&Bear, Massimo Dutti, Bershka, Stradivarius, Oysho, Uterqüe, Zara Home e Zara. Como os nomes sugerem, marcas de requintadas mercadorias, vendidas em lojas elegantemente instaladas nas principais praças comerciais do planeta.

◙       O lema do grupo é “pronto para usar”, em tradução livre (“Right to wear”, www.inditex.com). Na página do grupo, há louvações à sustentabilidade, como “a base de todas as nossas decisões de negócios. Nós nos esforçamos para oferecer aos nossos clientes produtos seguros e éticos que são feitos de forma a respeitar o ambiente e a sociedade no sentido mais amplo”.

◙       Sem especificar como, o lema desdobra-se em um amplo leque de interferências nas práticas corporativas, como gestão da sustentabilidade, zelo pelos padrões dos produtos que assegurem a saúde e segurança dos clientes, responsabilidade e trabalho a serviço dos clientes, zelo pelas práticas de responsabilidade na cadeia de valor, investimento social de forma a estreitar os laços com as comunidades com que faz negócios, e considerar os aspectos ambientais em todas as práticas de negócios. Tudo bem inespecífico.

◙       Específico mesmo é o descumprimento do Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), firmado em 2011 para sanear as degradantes condições de trabalho que levaram a Zara a se utilizar de trabalho assemelhado a trabalho escravo, em sua cadeia de valor.

◙       De acordo com o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), 67 fornecedores da Zara foram auditados, o que resultou em 433 irregularidades verificadas. Entre as irregularidades, foram registradas excesso de jornada de trabalho, atraso nos pagamentos, acidentes, uso de trabalho infantil, discriminação por impedimento de utilização de imigrantes na produção, entre outros. A autuação pode resultar em multas da ordem de R$ 25 milhões.

◙       Em 2011, a Zara foi autuada por manter 15 trabalhadores bolivianos e peruanos em condições de trabalho análogas à de trabalho escravo em oficina de costura. Precariedade das condições de higiene, servidão por dívidas contraídas e jornada de trabalho excessiva.

◙       De lá para cá, as irregularidades persistem, sem a prometida adoção de medidas saneadoras. Na cadeia de fornecedores, foram identificadas 22 empresas com registro de jornada excessiva, e 23 com descontos não recolhidos ao Fundo de Garantia pelo Tempo de Serviço (FGTS).

◙       O relatório da Superintendência Regional do MTE indica ainda que empresas que utilizavam trabalhadores bolivianos foram excluídas da cadeia de fornecedores, caracterizando-se atitude discriminatória com restrição de acesso ao trabalho por origem ou etnia do trabalhador. Foram fechados ainda cerca de 3,2 mil postos de trabalho, em consequência da fuga de fornecedores para outros estados, a fim de escapar da fiscalização.

◙       Nos dez últimos anos cobertos pelas estatísticas divulgadas pelo Ministério Público do Trabalho (http://portal.mte.gov.br/data), de 2004 a 2013, foram resgatados 35.362 trabalhadores da condição de trabalho em condições análogas à de trabalho escravo no Brasil.

◙       “Navios negreiros” ou “navios tumbeiros” eram os nomes dados às embarcações que transportavam os escravos originários da África para o Brasil. O lucrativo comércio de escravos enriqueceu também os donos deste tipo de transporte. As embarcações, desenvolvidas para este fim, eram carregadas de um contingente excessivo de pessoas, para compensar as grandes perdas, que as condições desumanas de saúde, higiene e segurança determinavam.

◙       Os novos “navios tumbeiros”, com grife e requinte, arrastam até os nossos dias as lucrativas práticas escravistas, dissimuladas pelo discurso inespecífico e pelo brilho das vitrines, nos mais sofisticados endereços das capitais do mundo.



Paulo Márcio de Mello
paulomm@paulomm.pro.br
Professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)

A coluna EMPRESA-CIDADÃ é publicada, desde 2001, toda quarta-feira,
no centenário jornal Monitor Mercantil (www.monitormercantil.com.br).
São mais de 600 edições apresentando casos de empreendedores e empresas,
pesquisas, resenhas, editais ou agenda, relativos à sustentabilidade,
à responsabilidade social e ao desenvolvimento sustentável.




quarta-feira, 6 de maio de 2015

Aqui não tem terremoto
                                                                              
A complacência com práticas como as de roubar e furtar,
considerando-as culturais e, portanto, aceitáveis,
mesmo que dentro de limites,
tem importantes implicações econômicas,
como influenciar na concentração da renda e da riqueza,
na produtividade e rentabilidade, ou
na sustentabilidade.

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economia&arte

Coluna EMPRESA-CIDADÃ
Quarta-feira, 6 de maio de 2015
Paulo Márcio de Mello*

Há no Brasil mais de 860 shopping centers, reunindo mais de 130 mil lojas e público acima de 470 milhões de pessoas. São dados da Associação Brasileira de Lojistas de Shopping (ALSHOP). O faturamento consolidado em shoppings superou a marca de R$132 bilhões, em 2013. Roubos e furtos representam cerca de 70% das ocorrências de perdas no segmento. Os itens mais visados, segundo a Associação Brasileira de Supermercados (Abras), são desodorantes, aparelhos de barbear, chocolates em geral, carnes e bebidas (com destaque para uísque e vodka).

Em consequência, o Brasil representa um mercado de segurança expressivo. O segmento de segurança eletrônica, em particular, segundo pesquisa da Security Industry Association (SIA) que, em 2011, representava R$ 1,2 bilhão, tem potencial de mercado de R$ 3,7 bilhões, até 2017. Os itens mais demandados são circuitos fechados de TV, alarmes e controladores de acesso.

As perdas por furto ou roubo no setor supermercadista que, em 2008, foram de 2,36% do faturamento, declinam ano a ano: 2,33% em 2009; 2,26% em 2010; 1,96% em 2011; e consolidando as perdas de todos os tipos, em 2012, alcançou R$ 4,74 bilhões, equivalentes a 1,95% do faturamento de R$ 242,9 bilhões.

Apesar das cifras bilionárias, apenas 28% dos supermercados priorizam a prevenção de perdas internas ou externas. Sobretudo quando os seus números estão na média, ou abaixo dela. É como se “estar na média” significasse estar enquadrado na cultura vigente. Restaria então externalizar este custo, transferindo-o para o bolso da população.

O índice médio de perdas de 1,95% do faturamento, em 2012, apurado pela 13ª Avaliação de Perdas no Varejo Brasileiro (Abras-Provar FIA-Nielsen), não se distribui de forma homogênea pelos diferentes segmentos do setor. Entre pequenos supermercados, ele é mais de três vezes o índice médio, alcançando perdas equivalentes a 6,7% do faturamento.

Se observadas as segmentações do varejo, podem ser constatadas, por exemplo, perdas entre os grandes varejistas de farmácias e drogarias de 0,33% do faturamento, enquanto entre pequenos chega a 4,6%. Em materiais de construção, o índice das perdas entre os grandes varejistas é de 1,02%, apurado sobre o faturamento. Já entre os pequenos, alcança 11,4%.

Entre as micro e pequenas empresas, o impacto da corrosão gerada pela cultura de tolerância com as perdas por roubos e furtos pode chegar a comprometer a sustentabilidade. Apesar da importância de representarem quase metade dos empregos do setor privado e mais de 95% dos estabelecimentos no Brasil, elas apresentam um índice 5,37 vezes maior do que as médias e grandes empresas (pesquisa Sebrae-Instituto Brasileiro de Executivos de Varejo e Mercado de Consumo Ibevar).

Outro estudo, desta vez realizado pelo Centro de Pesquisas do Varejo, da Grã Bretanha, englobando 1069 empresas, de 41 países, situa o Brasil entre os 10 mais, em perdas no varejo provocadas por roubos, furtos e falhas processuais, como erros contábeis, alternando posições com Índia, Marrocos, México, África do Sul, Turquia, Tailândia e Eslováquia.

Após a deflagração da crise econômica, em 2008, houve um aumento generalizado das perdas, ressaltando-se os índices deste aumento da Itália (54,2%), África do Sul (52,6%) e EUA (51,7%). Na América Latina e América do Norte predominam as perdas por causas internas e na Europa, Ásia, Oriente Médio e África a predominância é de perdas provocadas por “clientes”. No Brasil, o estudo apresentou 41,2% das perdas causadas por empregados, 33,8% por clientes, 8,2% por fornecedores e 16,8% por erros de gestão.

Paulo Márcio de Mello
paulomm@paulomm.pro.br
Professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)

A coluna EMPRESA-CIDADÃ é publicada, desde 2001, toda quarta-feira,
no centenário jornal Monitor Mercantil (www.monitormercantil.com.br).
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