Economia
ou economia política da sustentabilidade?
Texto
para Discussão. IE/UNICAMP, Campinas, n. 102, set. 2001.
blog
do professor paulo márcio
economia&arte
Ademar
Ribeiro Romeiro
Professor do Instituto de Economia da Unicamp.
Resumo
O
objetivo principal do trabalho é o de mostrar como o desafio da
sustentabilidade não tem como ser enfrentado a partir de uma perspectiva
teórica que desconsidera as dimensões culturais e éticas no processo de tomada
de decisão o qual, por sua vez, será supra-individual.
Sua estrutura analítica é
composta de uma seção onde se discute a capacidade de intervenção humana na
natureza e a noção de limites. Outra seção apresenta uma análise das duas
principais correntes teóricas em economia sobre a questão ambiental. Em seguida
se discute as dificuldades de mudança em função da contradição existente entre
padrão de consumo e padrão de acumulação.
O trabalho termina com uma
análise do processo de tomada de decisão sob incerteza, que inclui uma
apresentação do Princípio da Precaução e de uma proposta metodológica de
classificação e hierarquização dos problemas ambientais (ciência pós-normal).
Palavras-chave : Economia política; Economia
ecológica; Economia; Economia do meio ambiente; Sustentabilidade; Ciência
pós-normal.
Abstract
The paper aims at showing that sustainability can not be achieved in a
individualistic basis, nor without taking into account the political and
ethical dimensions involved in the decision processes.
That is what separates the standard approach of environmental economics
(the economics of sustainability) from the alternative one of ecological
economics (the political economy of sustainability). It discusses also the
human capacity of intervention in nature and the notion of limits and the
difficulties of changing consume habits as they are connected with the
accumulation patterns of the system. Finally, it presents an analysis of the
decision process under uncertainty, including a presentation of the Precautionary
Principle and a methodological proposal to classify environmental problems
according to the decision stakes and systemic uncertainty (Pos-Normal Science).
Key words: Political economy; Ecological economics;
Economics; Environmental economics; Sustainability; Pos-normal Science.
Introdução
Tradicionalmente, o adjetivo política
ao substantivo economia indica uma visão teórica que se
distingue por incluir em seu esquema analítico considerações de ordem política
em seu sentido amplo, isto é, inclui considerações morais e éticas em
contraposição à economia sem adjetivo (economics), cuja visão
teórica subjacente (neoclássica) pressupunha ser uma exigência científica a
exclusão deste tipo de considerações (1).
(1)Em
sua exortação pela volta à tradição ética em economia, Sen (1987) observa que desde Adam Smith duas tradições em economia se firmaram: uma, preocupada com a moral e a ética [que além dos autores clássicos como o próprio Smith, Marx, Ricardo, Stuart Mill, inclui autores como Veblen, Myrdal, entre outros, e toda a escola institucionalista contemporânea]; a outra (neoclássica), que ele classifica como uma espécie de “engenharia econômica”, onde esta preocupação não existiu.
Entretanto, como dizia Myrdal
(1978), a economia é sempre economia política na medida em que todo ser humano
pensa e age a partir de uma escala de valores. É ilusória a idéia positivista
de que as proposições podem ser divididas claramente entre positivas e
normativas. Existe sempre algum julgamento de valor ou aspecto ideológico em todos
os conceitos, afirmações e teorias em economia.
Nesse sentido, como observa
Soderbaum (1991), o hábito da economia convencional de olhar os valores e as
preferências como exógenamente dados não é algo que decorre de uma posição
cientificamente neutra.
No esquema analítico
convencional, o que seria uma economia da sustentabilidade é
visto como um problema, em ultima instância, de alocação intertemporal
de recursos entre consumo e investimento por agentes econômicos racionais,
cujas motivações são fundamentalmente maximizadoras de utilidade.
A ação coletiva (através do
Estado) se faz necessária apenas para corrigir as falhas de mercado que ocorrem
devido ao fato de boa parte dos serviços ambientais se constituir de bens
públicos (ar, água, capacidade de assimilação de dejetos, etc.) não tendo,
portanto, preços.
Uma vez corrigidas estas falhas,
de modo a garantir a correta sinalização econômica da escassez relativa destes
serviços ambientais, a dinâmica de alocação intertemporal de recursos tenderia
a se processar de modo eficiente, não havendo problemas de incerteza e de risco
de perdas irreversíveis.
No esquema analítico proposto, o
problema da economia política da sustentabilidade é visto como um
problema de distribuição intertemporal de recursos naturais finitos, o
que pressupõe a definição de limites para seu uso (escala).
Além disso, trata-se de um
processo envolvendo agentes econômicos cujo comportamento é complexo em suas
motivações (as quais incluem dimensões sociais, culturais, morais e ideológicas)
e que atuam num contexto de incertezas e de riscos de perdas irreversíveis que
o progresso da ciência não tem como eliminar.
Desse modo, tanto a natureza como
o papel da ação coletiva são completamente distintos daqueles pressupostos no
esquema analítico convencional. Trata-se de um processo de escolha pública onde
caberá à sociedade civil, em suas várias formas de organização (o Estado entre
outras), decidir, em ultima instância, com base em considerações morais e
éticas.
Desse modo, o objetivo principal
do trabalho é o de mostrar como o desafio da sustentabilidade não tem como ser
enfrentado a partir de uma perspectiva teórica que desconsidera as dimensões
culturais e éticas no processo de tomada de decisão o qual, por sua vez, será
supra-individual. Para atingir este objetivo, o texto se divide em mais 4
seções além desta introdução.
A primeira seção apresenta uma
breve digressão sobre a evolução histórica da capacidade das sociedades humanas
de transformar a natureza, marcada pelas revoluções agrícola e industrial.
Busca-se deixar claro que embora esta evolução tenha sido marcada cada vez mais
por desequilíbrios ecológicos, isto não é inevitável. É possível transformar
radicalmente a natureza, como quando se faz agricultura sem, no entanto,
desrespeitar as regras ecológicas básicas.
Outro ponto a notar refere-se à
magnitude da escala atual das atividades humanas o que, independentemente
destas atividades respeitarem ou não as regras ecológicas básicas, levanta o
problema do limite da capacidade de suporte do planeta terra.
Nesse sentido, se enfatiza a
necessidade de não apenas buscar-se uma melhor eficiência na utilização dos
recursos naturais, reduzindo drasticamente e/ou eliminando a poluição, como também
a necessidade de estabilizar os níveis de consumo de recursos naturais per
capita dentro dos limites da capacidade de suporte do planeta.
Na seção seguinte discute -se a
questão do desenvolvimento sustentável de uma perspectiva teórica. São
apresentados os fundamentos das duas principais correntes teóricas em economia
que tratam dos problemas de sustentabilidade: a economia ambiental
(neoclássica) e a economia ecológica. As diferenças entre as duas abordagens
são assinaladas não apenas do ponto de vista teórico, como também daquele das
implicações concretas destas duas visões analíticas em termos das políticas
ambientais que inspiram e suas conseqüências.
A seção 3 apresenta uma análise
dos limites à mudança decorrente das características próprias da dinâmica de
acumulação de capitalista e do padrão de consumo correspondente, marcado pela
criação incessante de novas necessidades de consumo.
Nesse sentido, a estabilização do
consumo de recursos naturais per capita dependerá de uma mudança de valores.
São apresentadas também as condições objetivas que podem contribuir para o
sucesso de um movimento de educação ambiental visando esta mudança de valores
com base, em ultima instância, em considerações de ordem ética.
Finalmente, na ultima seção, são
brevemente sumariadas as condições históricas que explicam o surgimento de um
instrumento jurídico, o Princípio de Precaução, que se configura como um
importante inovação institucional aplicável em processos de tomada de decisões
sob incerteza. Apresenta-se também uma proposta metodológica de
classificação e hierarquização dos problemas ambientais segundo os níveis de
incerteza sistêmica e de risco de perdas irreversíveis.
1 Desenvolvimento sustentável –
Perspectiva histórica
Num passado distante, antes do
controle do fogo pela espécie humana, a interação desta com a natureza era
semelhante àquela dos animais mais próximos na cadeia evolutiva, como os
grandes primatas. O controle do fogo abriu caminho para que esta interação
assumisse características próprias cada vez mais distintas.
Sobrevivem, entretanto, ainda
hoje, amostras de povos, como os Yanomamis, vivendo no neolítico, testemunhos
vivos de que o controle do fogo por si só pode não levar a mudanças radicais e
progressivas no modo de inserção da espécie humana na natureza.
Do ponto de vista ecológico, o
modo de vida de povos como os Yanomamis, ou mesmo de outros
povos indígenas mais evoluídos no sentido de usar mais largamente o fogo como
técnica agroflorestal e outros instrumentos, não provoca nenhum desequilíbrio
comprometedor do ecossistema, embora o modifique.
Seu modo de vida conduz a
transformações na paisagem florestal que, embora não facilmente perceptíveis
para olhos não treinados, são reais e bastante marcadas em determinados locais.
Mas são transformações de tal modo integradas com o ambiente florestal que não
se diferenciam muito do tipo de transformações que certas espécies animais
podem causar no ecossistema onde estão inseridas.
Portanto, um ecossistema em
equilíbrio não quer dizer um ecossistema estático. É um sistema dinâmico, que
se modifica, embora lentamente, graças à interações entre as diversas espécies
nele contidas, num processo conhecido como coevolução.
Com a invenção da agricultura há
cerca de dez mil anos atrás, a humanidade deu um passo decisivo
na diferenciação de seu modo de inserção na natureza em relação àquela das
demais espécies animais. A agricultura provoca uma modificação radical nos
ecossistemas.
A imensa variedade de espécies de
um ecossistema florestal, por exemplo, é substituída pelo cultivo/criação de
umas poucas espécies, selecionadas em
função de seu valor seja como alimento, seja como fonte de outros tipos de
matérias-primas que os seres humanos considerem importantes.
Entretanto, apesar de modificar
radicalmente o ecossistema original, a agricultura não é necessariamente
incompatível com a preservação dos equilíbrios ambientais fundamentais. É
possível construir um ecossistema agrícola baseado em sistemas de produção que
preservem certos mecanismos básicos de regulação ecológica. Por exemplo, pode-se
reduzir a infestação de pragas nas culturas com a alternância do cultivo de
espécies distintas numa mesma área (rotações de culturas).
Este resultado é obtido na medida
em que a rotação de culturas é uma forma de garantir um mínimo de
biodiversidade, que é o principal mecanismo da natureza para manter o
equilíbrio do ecossistema. Do mesmo modo, pode-se obter efeito semelhante
através da manutenção de uma paisagem agrícola diversificada, entremeada de bosques e matas, de
áreas de aguadas, etc.
Em relação à manutenção da
fertilidade do solo, para garantir a sustentabilidade é preciso não
apenas repor os nutrientes exportados com as culturas, mas fazê-lo de modo
equilibrado, isto é, de acordo com os processos naturais de reciclagem de
nutrientes. Uma fertilização química desequilibrada tem impactos negativos no
próprio solo, bem como sobre os recursos hídricos do ecossistema.
Enfim, é possível, em princípio,
transformar radicalmente um dado ecossistema natural,
substituindo-o por outro, “artificial”, mas também equilibrado do ponto de
vista ecológico. A diferença fundamental neste ultimo caso é que a manutenção
do equilíbrio terá que contar com a participação ativa dos seres humanos,
agindo com base em certos princípios básicos de regulação ecológica (diversidade biológica,
reciclagem de nutrientes, etc.).
Com a Revolução Industrial a
capacidade da humanidade de intervir na natureza dá um novo salto colossal e
que continua a aumentar sem cessar. É interessante notar que esta enorme
capacidade de intervenção ao mesmo tempo em que provocou grandes danos
ambientais, também ofereceu em muitas situações os meios para que a humanidade
afastasse a ameaça imediata que estes danos pudessem representar para sua
sobrevivência e, com isso, retardasse a adoção de técnicas e procedimentos mais
sustentáveis.
Um exemplo significativo neste
sentido foi o uso intensivo de fertilizantes químicos baratos que, em muitas
regiões, mascarou o efeito da erosão dos solos sobre a produtividade agrícola.
Para além dos desequilíbrios
ambientais decorrentes desta maior capacidade de intervenção, a Revolução
Industrial baseada no uso intensivo de grandes reservas de combustíveis
fósseis, abriu caminho para uma expansão inédita da escala das
atividades humanas, que pressiona fortemente a base de recursos naturais do planeta.
Ou seja, mesmo se todas as
atividades produtivas humanas respeitassem princípios ecológicos básicos, sua
expansão não poderia ultrapassar os limites ambientais globais que definem a
“capacidade de carga” (carrying capacity) do planeta.
A magnitude da punção exercida
pelas sociedades humanas sobre o meio ambiente, sua “pegada ecológica” (ecological
footprint – Box 1), resulta do tamanho da população multiplicado pelo
consumo per capita de recursos naturais, dada a tecnologia. O progresso técnico
pode atenuar relativamente esta pressão, mas não eliminá-la.
A “capacidade de carga” do
planeta terra não poderá ser ultrapassada sem que ocorram grandes catástrofes
ambientais. Entretanto, como não se conhece qual é esta capacidade de carga, e
que será muito difícil conhecê-la com precisão, é necessário adotar uma postura
precavida que implica agir sem esperar para ter certeza.
Nesse sentido, é preciso criar o quanto
antes as condições socioeconômicas, institucionais e culturais que estimulem
não apenas um rápido progresso tecnológico poupador de recursos naturais, como
também uma mudança em direção a padrões de consumo que não impliquem o
crescimento contínuo e ilimitado do uso de recursos naturais per
capita.
Como veremos mais adiante, é mais
fácil atingir boa parte do primeiro destes objetivos do que o segundo. Em
relação a este ultimo, a grande dificuldade está em que a estabilização dos
níveis de consumo per capita pressupõe uma mudança de atitude, de valores, que
contraria aquela prevalecente ligada à lógica do processo de acumulação de
capital em vigor desde a ascensão do capitalismo, que se caracteriza pela
criação incessante de novas necessidades de consumo. Haveria, portanto, que se
passar de uma “civilização do ter” para uma “civilização do ser” (Sachs, 1993).
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Box 1
“Pegada
Ecológica” (Ecological Footprint)
O conceito de “pegada ecológica”
é baseado na idéia de que para a maioria dos tipos de consumo material e
energético corresponde uma área mensurável de terra e de água nos diversos
ecossistemas que deverá fornecer os fluxos de recursos naturais necessários
para cada tipo de consumo, bem como a capacidade de assimilação dos rejeitos
gerados.
Desse modo, para se estimar a
pegada ecológica de uma determinada sociedade é preciso considerar
as implicações (coeficientes técnicos) de cada tipo de consumo em termos de
demanda por recursos naturais.
Atualmente existem estimativas
com base em 6 categorias de uso da terra: terra degradada ou consumida (por
exemplo, aquela sob áreas construídas), terra sob jardins, terra agrícola,
pastagens, florestas plantadas e terra de energia. As áreas sob águas,
notadamente o oceano, ainda coloca dificuldades importantes para sua avaliação.
A terra de energia pode ser
definida de dois modos:
a-) como a área média necessária
para produzir um determinado fluxo de energia de biomassa equivalente ao fluxo
atual obtido com a queima de combustíveis fósseis;
b-) como a área média de
florestas “sequestradoras de carbono” necessária para absorver as emissões
atuais de dióxido de carbono. A primeira seria a escolhida no caso de abandono
do uso de combustíveis fósseis. A segunda no caso de se continuar queimando
estes combustíveis fósseis.
É claro que estes são exercícios
ainda bastante precários e que, provavelmente, não poderão superar todos os
obstáculos metodológicos para se obter uma medida acurada da punção exercida
pelas sociedades humanas sobre o meio ambiente.
No entanto, apesar das
controvérsias, são exercícios úteis que, juntamente com outras medidas
agregadas de impactos ambientais (indicadores de sustentabilidade e contas
ambientais) podem ter um papel importante tanto do ponto de vista pedagógico,
de conscientização ecológica, como também para orientar a definição de
políticas ambientais.
Para uma discussão mais
detalhada, ver o número especial dedicado a este tema da revista Ecological
Economics, v. 32, n. 3, Mar. 2000.
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2 Desenvolvimento sustentável –
Perspectiva teórica
O conceito de desenvolvimento
sustentável é um conceito normativo que surgiu com o nome de ecodesenvolvimento
no início da década de 70 (3). Ele surgiu num contexto de controvérsia
sobre as relações entre crescimento econômico e meio ambiente, exacerbada principalmente
pela publicação do relatório do Clube de Roma que pregava o crescimento zero
como forma de evitar a catástrofe ambiental.
(3)A autoria do termo não é bem estabelecida, mas existe concordância
geral em atribuir a Ignacy Sachs, da Escola de
Altos em Ciências Sociais de Paris, uma preeminência nas suas qualificações conceituais.
Ele emerge deste contexto como
uma proposição conciliadora, onde se reconhece que o progresso técnico
efetivamente relativiza os limites ambientais, mas não os elimina e que o
crescimento econômico é condição necessária, mas não suficiente para a
eliminação da pobreza e disparidades sociais.
O tempo jogou a favor de uma
ampla aceitação desta proposição mas que, por esta ser basicamente normativa,
não foi capaz de eliminar as divergências quanto à sua interpretação. As
dificuldades desse entendimento revelam-se não
apenas nas incontáveis definições de desenvolvimento sustentável, como também
nas diferenças de interpretação de uma mesma definição.
No Relatório Brundtland (CMMAD,
1988), por exemplo, ele é definido basicamente como “aquele
que satisfaz as necessidades atuais sem sacrificar a habilidade do futuro
satisfazer as suas”. Mas o que isso quer dizer exatamente? Como se traduz em
termos de políticas públicas?
No debate acadêmico em economia
do meio ambiente as opiniões se dividem entre duas correntes principais de
interpretação (4):
(a) A primeira corrente é
representada principalmente pela chamada Economia Ambiental (o main stream neoclássico)
e considera que os recursos naturais (como fonte de insumos e como capacidade
de assimilação de impactos dos ecosistemas) não representam, a longo prazo, um
limite absoluto à expansão da economia. Pelo contrário, inicialmente estes
recursos sequer apareciam em suas representações analíticas da realidade
econômica como, por exemplo, na especificação de função de produção onde
entravam apenas o capital e o trabalho. A economia funcionava sem recursos
naturais (Figura 1A). Esta visão implícita de infinitude dos recursos naturais
na análise neoclássica foi objeto de crítica pioneira e sistemática por Nicolas
Georgescu-Roegen (Box 2).
(4)Uma primeira versão desta visão crítica foi publicada em Romeiro, A.R.(1999).
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Box 2
Nicolas Georgescu-Roegen
Com o tempo, os recursos naturais passaram a ser
incluídos nas representações de função de produção, mas mantendo
a sua forma multiplicativa, o que significa a substitubilidade perfeita entre
capital, trabalho e recursos naturais (5) e, portanto, a suposição de que os
limites impostos pela disponibilidade de recursos naturais podem ser
indefinidamente superados pelo progresso técnico que os substitui por capital
(ou trabalho). Em outras palavras, o sistema econômico é visto como
suficientemente grande para que a disponibilidade de recursos naturais (RN) se
torne uma restrição à sua expansão, mas uma restrição apenas relativa, superável
indefinidamente pelo progresso científico e tecnológico (Figura 1B).
(5) Y=
f(K,L,R), o que significa que a quantidade de recursos naturais (R) requerida pode ser tão pequena quanto se deseja desde que a quantidade de capital
(K) seja suficientemente grande. Georgescu-Roegen criticou essa nova versão da função de produção neoclássica
(que ele batiza de variante Solow-Stiglitz) chamando-a de “passe de mágica”.
Nicolas Georgescu-Roegen, matemático e economista
de origem romena, ocupa uma posição singular na história do pensamento econômico.
Economista reconhecido por suas contribuições ao main-stream, publicou em 1971 a obra seminal
intitulada The Entropy Law and the Economic Process que, embora saudada por Paul
Samuelson como uma obra revolucionária, passou todos esses anos sob o silencio da maioria
dos economistas convencionais, incluindo os trabalhos posteriores do próprio Samuelson!
A razão deste silencio na verdade não é difícil de
entender. A consideração da Lei da Entropia no raciocínio econômico forçaria a revisões
profundas no corpo teórico convencional. A começar pela representação básica do funcionamento
da economia através do diagrama do fluxo circular entre firmas e unidades de consumo
onde não há lugar para os recursos naturais como insumos e como rejeitos lançados ao meio
ambiente.
Aparentemente seria fácil incluir o meio ambiente
nesta representação analítica. No entanto, como observa Daly (1996), esta representação de
fluxo circular é inerente à epistemologia mecanicista do paradigma teórico neoclássico, onde
existem apenas movimentos reversíveis e qualitativamente neutros.
O que é importante ressaltar da obra de Georgescu é
a introdução da idéia de irreversibilidade e de limites na teoria econômica, que decorre da
segunda lei da termodinâmica (lei da entropia) em contraposição à primeira lei da termodinâmica
(sobre a transformação da matéria), onde esta idéia não faz sentido e sobre a qual se baseia
implicitamente a teoria econômica convencional.
Para maiores detalhes da obra de Georgescu-Roegen
ver o número especial da revista Ecological Economics, v. 22, n. 3, Sept. 1997, que
lhe foi dedicado.
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Tudo se passa como se o sistema
econômico fosse capaz de se mover suavemente de uma base de recursos para
outra à medida que cada uma é esgotada, sendo o progresso científico e
tecnológico a variável chave para garantir que esse processo de substituição não limite o
crescimento econômico a longo prazo.
Para esta corrente, os mecanismos
através dos quais se dá esta ampliação indefinida dos limites ambientais
ao crescimento econômico devem ser principalmente mecanismos de
mercado. No caso dos bens ambientais transacionados no mercado
(insumos materiais e energéticos), a escassez crescente de um determinado bem se
traduziria facilmente na elevação de seu preço, o que induz a introdução de inovações
que permitem poupá-lo, substituindo-o por outro recurso mais abundante. Em se
tratando dos serviços ambientais em geral não transacionados no mercado devido
sua natureza de bens públicos (ar, água, ciclos bioquímicos globais de
sustentação da vida, capacidade de assimilação de rejeitos, etc.), este mecanismo de mercado
falha. Para corrigir esta falha é necessário intervir para que a disposição à pagar por
esses serviços ambientais possa se expressar à medida em que sua escassez
aumenta.
Empiricamente teria sido
observado que a evolução natural das preferências dos indivíduos em função do
próprio processo de crescimento econômico seria no sentido de uma menor tolerância à
esta escassez crescente desses serviços devido à poluição, configurando o que pode
ser expresso como uma curva de Kuznets (6) ambiental: à medida que a renda
per capita se eleva com o crescimento econômico a degradação ambiental aumenta até
um certo ponto, a partir do qual a qualidade ambiental começa a melhorar. A explicação
para este fato estaria em que nos estágios iniciais do processo de
desenvolvimento econômico a crescente degradação do meio ambiente é
aceita como um efeito colateral ruim, mas inevitável. Entretanto, a partir
de certo nível de bem estar econômico a população torna-se mais sensível e disposta
a pagar pela melhoria da qualidade do meio ambiente, o que teria induzido a
introdução de inovações institucionais e organizacionais necessárias para
corrigir as falhas de mercado decorrentes do caráter público da maior parte
dos serviços ambientais.
(6) A expressão curva de Kuznets
ambiental tem sua origem num trabalho de Kuznets onde este mostrava empiricamente a existência de uma
curva com a forma de U invertido correlacionando crescimento econômico e distribuição de renda.
As soluções ideais seriam aquelas
que de algum modo criassem as condições para o livre
funcionamento dos mecanismos de mercado: seja diretamente eliminando o caráter
público desses bens e serviços através da definição de direitos de
propriedade sobre eles (negociação coaseana); seja indiretamente através da
valoração econômica da degradação destes bens e da imposição desses valores pelo
Estado através de taxas (taxação pigouviana). A primeira implicaria a
privatização de recursos como a água, o ar, etc. o que, entre outros obstáculos, esbarraria no
elevado custo de transação decorrente de processos de barganha que envolveriam
centenas ou mesmo milhares de agentes.
A segunda pressupõe ser possível
calcular estes valores a partir de uma curva marginal de degradação
ambiental. Desse modo, criaria-se para o agente econômico um trade off entre
seus custos (marginais) de controle da poluição e os custos (marginais) dos impactos
ambientais (externalidades) provocados por suas atividades produtivas, que ele
seria forçado a “internalizar” através do pagamento das taxas correspondentes
(Gráfico 1): o agente econômico vai procurar minimizar seu custo total que resulta da
soma do quanto vai gastar para controlar a poluição (custo de controle) com a quantia
a ser gasta com o pagamento de taxas por poluir (custo da degradação). O ponto de
equilíbrio é chamado de “poluição ótima”.
Gráfico 1
Custos marginais custos marginais
Custos de controle da degradação
Poluição ótima produção/poluição
Reconhece-se, entretanto, que é
uma ficção a concepção de uma curva
suave de custos marginais da
degradação, que ignora o fato de que os impactos
ambientais evoluem de modo imprevisível
devido a existência de efeitos sinérgicos,
12 Texto para Discussão.
IE/UNICAMP, Campinas, n. 102, set. 2001.
de tresholds e de reações
defasadas.7 Mas permanece o princípio de que a política
ambiental mais eficiente é aquela
que cria as condições, através da precificação,
para que os agentes econômicos
“internalizem” os custos da degradação que
provocam.
Figura 1A Figura 1B Figura 2
RN RN
Economia Economia Economia
(b) A segunda corrente de
interpretação é representada principalmente pela
chamada Economia Ecológica,
que vê o sistema econômico como um subsistema
de um todo maior que o contém,
impondo uma restrição absoluta à sua expansão
(Figura 2). Capital e recursos
naturais são essencialmente complementares. O
progresso científico e
tecnológico é visto como fundamental para aumentar a
eficiência na utilização dos
recursos naturais em geral (renováveis e não
renováveis) e, nesse aspecto,
esta corrente partilha com a primeira a convicção de
que é possível instituir uma
estrutura regulatória baseada em incentivos econômicos
capaz de aumentar imensamente
esta eficiência (ve r Box 3). Permanece, entretanto,
a discordância fundamental em
relação à capacidade de superação indefinida dos
limites ambientais globais. A
longo prazo, portanto, a sustentabilidade do sistema
econômico não é possível sem
estabilização dos níveis de consumo per capita de
acordo com a capacidade de carga
do planeta.
(7) Dasgupta & Maler (1995:
2378) observam que os ecossistemas evoluem constantemente mudando
também sua “capacidade de carga”
e de modo essencialmente imprevisível.
Texto para Discussão. IE/UNICAMP,
Campinas, n. 102, set. 2001. 13
Box 3
Eficiência ecológica
A questão central para esta
corrente de análise é, neste sentido, como fazer
com que a economia funcione
considerando a existência destes limites. O
mecanismo de ajuste proposto pelo
esquema analítico neoclássico por definição
desconsidera, como foi visto, a
existência destes limites, supondo a possibilidade de
substituição ilimitada dos
recursos que se tornam escassos por recursos abundantes.
No caso dos bens ambientais
transacionados no mercado (insumos
materiais e energéticos), o
esquema analítico convencional pressupõe que a
escassez crescente de um
determinado bem eleva seu preço, o que induz a
introdução de inovações que
permitem poupá -lo, substituindo-o por outros recursos
mais abundantes cujos estoques os
agentes econômicos são supostos conhecer,
juntamente com o conhecimento das
diferenças de qualidade, do curso futuro do
progresso tecnológico e da
própria demanda. Na verdade, como assinala Daly
(1996), os preços refletem a
disponibilidade de cada recurso independentemente do
estoque total de recursos, o que
impede que eles possam servir para sinalizar um
processo de extração ótima do
ponto de vista da sustentabilidade.
Atualmente, numa economia como a
americana apenas 6% de todo o fluxo de materiais que
consome resulta em produtos. Em
termos de bens duráveis esta relação cai para 1%. Estima-se
que cientifica e tecnologicamente
se poderia hoje reduzir imensamente esta ineficiência
ecológica através de uma elevação
radical da produtividade no uso dos recursos naturais, bem
como na redução não menos radical
na geração de resíduos.
Em relação à primeira, a
perspectiva é de que esta elevação poderia ser de no mínimo um fator
4 podendo atingir um fator 10.
Não seria impossível, por exemplo, construir um motor de
automóvel capaz de fazê-lo rodar
até 200 Km com um litro de gasolina. Em relação à segunda,
existe a perspectiva de
construção de sistemas produtivos alternativos que mimetizam os
processos biológicos (biomimicry)
pelos quais a natureza produz uma grande diversidade de
produtos altamente resistentes,
maleáveis, etc. Além disso, engenheiros “meta-industriais”
estão criando parques industriais
com emissão quase zero através da integração das industrias
em um complexo onde cada empresa
usa como insumo os resíduos de outra.
Os investimentos necessários para
esta revolução de produtividade seriam não apenas pagos
com o tempo pela economia de
recursos que propiciam como também, em muitos casos,
podem reduzir os investimentos
iniciais de capital. A enorme ineficiência que está causando
degradação ambiental quase sempre
custa mais do que as medidas que iriam reverter a ituação.
O grande obstáculo à sua
implementação está no fato de que os governos não só não acabaram,
como continuam a criar e
administrar leis, políticas, taxas e subsídios que tornam estas medidas
antieconômicas. Entretanto, em
alguns países este quadro começa a ser revertido através, por
exemplo, de reformas tributárias
que aliviam a tributação sobre a renda das pessoas
aumentando, em contrapartida, a
taxação sobre o uso de recursos naturais.
Para uma exposição detalhada
destas perspectivas ver Hawken, Lovins & Lovins (1999).
14 Texto para Discussão.
IE/UNICAMP, Campinas, n. 102, set. 2001.
No caso dos serviços ambientais
não transacionados no mercado devido sua
natureza de bens públicos, o
mecanismo de ajuste proposto não leva em conta
princípios ecológicos
fundamentais para garantir a sustentabilidade, na medida em
que este mecanismo é baseado no
cálculo de custo e benefício feito pelos agentes
econômicos visando a alocação de
recursos entre investimentos em controle da
poluição e pagamentos de taxas
por poluir de modo a minimizar o custo total. O
cálculo das taxas, por sua vez,
será baseado num conjunto de metodologias de
valoração econômica que mensuram
direta ou indiretamente a disposição à pagar
dos indivíduos por bens e serviços
ambientais.
Portanto, o ponto de equilíbrio,
chamado de “poluição ótima”, é de
equilíbrio econômico e não
ecológico pois, como observa Godard (1992),
ecologicamente não se pode falar
em equilíbrio quando a capacidade de assimilação
do meio é ultrapassada, como é o
caso uma vez que a poluição permanece. O fato
da capacidade de assimilação ser
ultrapassada em um dado período (t), reduz a
capacidade de assimilação no
período seguinte e, assim, sucessivamente podendo
resultar numa perda irreversível.
Existe, portanto, uma “destruição líquida”, sendo
que somente suas conseqüências de
segunda ordem são levadas em conta, isto é,
aquelas que afetam o nível de bem
estar, a curto prazo, de outros agentes.
Este mecanismo de ajuste implica
que a tecnologia e as preferências (e,
implicitamente, a distribuição de
renda) são tomadas como parâmetros não físicos
que determinam uma posição de
equilíbrio onde se ajustam as variáveis físicas das
quantidades de bens e serviços
ambientais usados (a escala) quando o correto seria,
ao contrário, tomar estas
quantidades como os parâmetros físicos aos quais deverão
se ajustar as variáveis não
físicas da tecnologia e das preferências. Estes parâmetros
de sustentabilidade, por sua vez,
só podem ser socialmente definidos. A
determinação de uma escala
sustentável, da mesma forma que uma distribuição
justa de renda, envolve valores
outros que a busca individual de maximização do
ganho ou do bem estar, como a
solidariedade inter e intra-gerações, valores estes
que têm que se afirmar num
contexto de controvérsias e incertezas cientificas
decorrentes da complexidade dos
problemas ambientais globais. São por estas
razões, portanto, que a
determinação da escala que se considere sustentável só pode
ser realizada através de
processos coletivos de tomada de decisão.
Desse modo, sem uma intervenção
coletiva que defina a escala que a
sociedade considere sustentável,
a melhoria da qualidade ambiental induzida pela
degradação ambiental (a curva de
Kuznets ambiental) tende a se limitar àquela
degradação que afeta a curto
prazo o nível de bem estar dos agentes (como a
provocada pelas emissões de gazes
sulfurosos, de particulados, o despejo de esgoto
doméstico, etc.), deixando de
lado aquela cujos efeitos envolvem custos mais
dispersos e de longo prazo, como
é o caso por exemplo da degradação provocada
Texto para Discussão. IE/UNICAMP,
Campinas, n. 102, set. 2001. 15
pela emissão de dióxido de
carbono causadora do efeito estufa (ver Arrow et al.
1995). De modo geral, portanto, o
declínio da poluição associado ao aumento da
renda se deveu a reformas
institucionais locais, tais como legislação ambiental e
incentivos baseados em mecanismos
de mercado, que não consideram suas
conseqüências internacionais e
intergeracionais. Em outras palavras, essas reformas
não contribuem para evitar os
problemas quando seus custos são suportados pelas
populações (via de regra pobres)
de outros países ou pelas futuras gerações, ou seja,
não levam em conta os proble mas
relacionados à justiça distributiva e à escala.
3 Capitalismo e meio ambiente
Como foi mencionado, a grande
dificuldade para a adoção de uma atitude
precavida de buscar estabilizar o
nível de consumo de recursos naturais está em que
esta estabilização pressupõe uma
mudança de atitude que contraria a lógica do
processo de acumulação de capital
em vigor desde a ascensão do capitalismo. Para
melhor compreender esta
dificuldade é preciso ter em mente o que representou a
ascensão do sistema capitalista,
comparado com o sistema feudal anterior, em
relação à atitude da sociedade
face à produção e ao consumo.
Sob muitos aspectos, pode-se
dizer que as organizações e instituições
feudais representavam uma espécie
de expressão organizacional e institucional de
motivações não econômicas e/ou
altruístas da sociedade. Isto porque através destas
instituições e organizações a
sociedade feudal buscava submeter as atividades
produtivas a minuciosas
regulações que refletiam o que ela entendia ser justo, de
acordo como uma determinada ordem
considerada ideal: desde regras detalhadas de
apropriação dos recursos naturais
e especificações técnicas sobre como produzir
para garantir uma determinada
qualidade, passando pela regulação da quantidade a
ser produzida, até a determinação
da distribuição do excedente e/ou do preço que
seria justo. Ou seja, era uma
sociedade que buscava submeter a racionalidade
econômica a um conjunto de
restrições de ordem não econômica e/ou altruísta.
O que caracteriza a ascensão das
sociedades capitalistas modernas é, como
assinala Gorz (1991),
precisamente a abolição destas restrições (de caráter religioso,
estético, cultural e social) às
quais a racionalidade econômica estava subordinada.
Com o capitalismo, portanto, o
uso dos recursos tanto os humanos como os naturais
passa a ter quase nenhum controle
social. Esta liberação de todo tipo de restrição
regulatória da atividade
econômica teve o efeito positivo de intensificar fortemente
o dinamismo tecnológico já
presente na sociedade feudal (Box 4). O lado negativo,
entretanto, foi a enorme
exploração do trabalho que se seguiu e que atingiu níveis
hoje inimagináveis, dando margem
a uma grande reação intelectual e
organizacional expressa
principalmente pelos movimentos socialistas e sindicais.
16 Texto para Discussão.
IE/UNICAMP, Campinas, n. 102, set. 2001.
Em razão destes movimentos, pouco
a pouco uma série de restrições à exploração
do trabalho foram sendo
introduzidas, na forma de leis e regulações diversas
(limitação da jornada de
trabalho, proibição do trabalho infantil, salário mínimo,
férias remuneradas, etc.). Como
observa Daly (1996), algumas destas leis e
regulações são baseadas em
princípios medievais, tais como o princípio escolástico
do preço justo.
Box 4
Tecnologia e civilização ocidental
O dinamismo tecnológico do
Ocidente embora tenha se amplificado imensamente com a
ascensão do sistema capitalista
baseado na propriedade privada dos meios de produção, decorre
de certos valores e instituições
peculiares à Civilização Ocidental, presentes também desde o
início do feudalismo.
De um lado encontra-se sua visão
antropocêntrica sobre o sentido da presença humana na terra
derivada da cosmologia
judaico-cristã, na qual os seres humanos foram criados por Deus à sua
imagem e semelhança e aos quais
toda a terra e seus recursos estão submetidas. Como
assinalam vários historiadores,
esta visão representou uma extraordinária mudança de
mentalidade na história da
humanidade e contribuiu para uma atitude fortemente pró-ativa no
sentido de manipular e
transformar a natureza, inventando novos métodos e procedimentos.
De outro lado situa-se a
fragmentação territorial e, dentro das regiões, a divisão de poder entre
o centro (a coroa) e o senhor
feudal local, implicando a existência de multiplos centros de
decisão. Este fato representou um
estímulo à inovação na medida em que tornou possível para
os agentes inovadores barganhar
suas idéias com dirigentes em competição mútua.
Estas especificidades da
Civilização Ocidental explicam o fato de que já durante o feudalismo
havia uma estrutura singular de
incentivos para realizar o potencial de ganhos do progresso
técnico quando comparada com as
civilizações contemporâneas, que não apenas estimulava a
criatividade tecnológica
(invenções) como também o tipo de criatividade que tinha expressão
econômica (inovações), reduzindo
o desgaste do trabalho e elevando o bem estar material da
população em geral.
Na antiguidade clássica as
estruturas institucionais e organizacionais foram suficientes para
promover as condições para a
expansão comercial. Mas o crescimento econômico resultante foi
relativamente limitado e
beneficiou apenas uma pequena elite. As evidências provam que esta
civilização possuía potencial
intelectual para criar aparelhos e instrumentos complicados, mas
apenas uma fração deste potencial
se traduziu em progresso econômico. A Civilização
Islâmica, por sua vez, absorveu e
aplicou as realizações culturais de outras civilizações, mas
não foi capaz desenvolve-las,
transformando-as em fonte de dinamismo tecnológico com
expressão econômica. Ou ainda a
Civilização Chinesa, onde a sofisticação intelectual e
estrutura institucional foram
eficientes em prover os incentivos para uma expansão econômica
regular através do crescimento
populacional, mas que também beneficiou apenas uma pequena
minoria. Sua grande inventividade
também não teve muita expressão econômica.
Ver Jones (1993), Mokyr (1990), Landes (1997), Rosenberg & Birdsell
(1986), White (1968),
entre outros.
Texto para Discussão. IE/UNICAMP,
Campinas, n. 102, set. 2001. 17
Em relação aos recursos naturais
só muito recentemente os agentes
econômicos passaram a sofrer
restrições em relação à forma como os vinham
usando. Ainda assim, como foi
visto, estas restrições regulatórias se concentraram
fundamentalmente sobre aquelas
atividades cujos efeitos degradantes atingia m a
qualidade de vida das populações
em seus locais de origem. A aceitação, por parte
destas populações (concentrada
nos países afluentes), de restrições ambientais que
envolvam algum tipo de sacrifício
em benefício de populações de outros países e/ou
de um futuro longínquo implica,
forçosamente, uma certa dose de altruísmo.8
No esquema analítico convencional
este tipo de altruísmo não existe, dado
seu postulado sobre o
comportamento humano (como egoísta e maximizador de
utilidade). Nesse contexto
analítico, a atitude da presente geração em relação ao
futuro é vista fundamentalmente
como um problema de alocação intertemporal de
recursos entre gerações, a qual é
regulada pelo que Howard & Norgaard (1995)
chamam de “laissez-faire”
altruísta, onde cada geração busca deixar uma herança
para a geração seguinte. Os
modelos de “gerações entrelaçadas” (overlaping
generations), por exemplo (Figura 3),
consideram que a convivência em cada
momento de várias gerações (pais,
filhos e netos) permitiria o estabelecimento de
uma “cadeia altruísta” entre
gerações, através da qual as gerações futuras poderiam
ter seu padrão de vida preservado
das conseqüências da degradação ambiental
provocada por seus antepassados.
Figura 3
O problema destes modelos é que
eles ignoram o fato básico de que as
conseqüências dos problemas
ambientais globais recairão muito mais à frente no
tempo, sobre uma descendência
remota de cada família.9 Portanto, o sentimento
altruísta necessário para induzir
atitudes solidárias em relação a gerações tão
distantes no tempo (e tão
diferentes geneticamente) só pode ser um sentimento não
(8) Parte desta seção se baseia
em Romeiro (2000).
(9) Daly & Cobb (1988)
observam que em 5 gerações cada membro da ultima será um descendente de 16
pessoas de diferentes origens.
Desse modo, não faz muito sentido alguém se preocupar e tomar alguma atitude em
relação a deixar uma herança para
descendentes longinquos (contendo apenas 1/16 de sua herança genética).
1 2 3 4
5
18 Texto para Discussão.
IE/UNICAMP, Campinas, n. 102, set. 2001.
filial de desprendimento. No
entanto, se este sentimento existe, então o bem estar
das gerações futuras se torna um
bem público e, como tal, exige uma ação coletiva
da sociedade organizada para
evitar que esta transferência de recursos entre
gerações venha a ser considerada
injusta (Marglin, 1963 e Sen, 1982). Para Daly
(1996), este sentimento existe
nos seres humanos e pode ser estimulado através de
ações culturais/educacionais,
principalmente (mas não exclusivamente) com o
apoio das grandes tradições
religiosas, uma vez que todas possuem um conteúdo
importante em relação a uma
gestão cuidadosa e responsável dos recursos naturais.
O progresso científico e
tecnológico na avaliação dos impactos ambientais e
sua contabilização monetária são
elementos importantes neste processo de educação
e conscientização ecológica. Para
autores como Siebenhuener (1999), a educação
ambiental poderia também ser
programada para despertar sentimentos amigáveis
em relação à natureza que foram
geneticamente condicionados. Segundo ele, a
psicologia evolucionária mostrou
que a constituição biológica e, em grande medida,
a psicológica também, do homem
moderno foi formada há cerca de 40 mil anos
atrás, quando os seres humanos
eram caçadores e coletores. O modo como os seres
humanos reagem emocionalmente,
sua sexualidade, seu desejo de exercer
atividades que tenham algum
significado, bem como seus sentimentos em relação à
natureza, evoluíram e se
estabilizaram até esta época.
Estes sentimentos, juntamente
certos “programas” mentais que regulam
reações imediatas em casos de
perigo, fome, sede, desejo sexual, etc., não estão
submetidos ao controle
consciente, e foram importantes para a sobrevivência da
espécie humana e se transmitem
geneticamente através das gerações. Em relação à
natureza, a sensação de simpatia,
beleza e paz que esta desperta em muitas pessoas
refletiria, portanto, um
sentimento geneticamente condicionado, o qual se encontra
amortecido pelo peso de um
determinado desenvolvimento cultural, mas que
poderia ser reativado através da
educação.
Existe também um conjunto de
fatores, não estritamente ecológicos, que
podem ter um papel coadjuvante
importante numa mudança de valores sócio -
culturais que permita a adoção de
padrões de consumo mais equilibrados
ecologicamente. Como chama a
atenção Abramovitz (1993), estes fatores têm
contribuído para abalar a firme
convicção, prevalecente até os anos 60, de que o
crescimento econômico era
condição necessária e suficiente para o bem estar.
Destes fatores vale ressaltar
três em especial: os riscos ligados à qualidade de
produtos essenciais (como os
alimentos), a própria idéia de que o aumento da
Texto para Discussão. IE/UNICAMP,
Campinas, n. 102, set. 2001. 19
afluência material implica sempre
no aumento do bem estar e a difusão do
sentimento de que o sistema é
eficiente mas não produz justiça.
No que concerne o primeiro desses
fatores, o caso recente da “vaca louca” é
um dos mais emblemáticos dos
problemas que resultam da dinâmica de
funcionamento das sociedades
industriais modernas. A lógica econômica
prevalecente induziu as firmas do
agro-negócio a um busca por inovações na área
de nutrição animal que reduzissem
custos, inovações estas que foram aprovadas
pelos órgãos reguladores com base
em critérios científicos estabelecidos para a
determinação de padrões de
segurança. Este caso mostrou de modo claro e
espetacular um tipo de relação de
causa e efeito (entre a forma de produzir o
alimento e a doença) que até
então tinha sido muito difícil de provar. No início dos
anos 60, Rachel Carson (1962) já
havia descrito, como uma hipótese científica, uma
relação similar de causa e
efeito, que foram os efeitos de novas substâncias
químicas sintéticas sobre os
ecossistemas e os seres humanos a qual, no entanto, o
stablishment do agro-negócio foi capaz durante
muito tempo de desqualificar
relativamente perante a opinião
pública e as próprias autoridades responsáveis pela
qualidade alimentar.
Em relação ao segundo fator, o
questionamento da idéia de que “mais é
sempre melhor” começou nos
Estados Unidos quando repetidos surveys (Gallup e
National Opinion Research Center) mostraram que o crescimento da
renda não foi
acompanhado de um aumento da
felicidade das pessoas tal como elas percebiam
isto. Os resultados destas
pesquisas foram analisados por Richard Easterlin, que
descobriu a seguinte situação:
uma correlação positiva, no mesmo período de
tempo, entre nível de renda e
grau de felicidade declarada à medida que se sobe na
escala de renda (ou seja, uma
maior proporção de pessoas se declaram felizes nos
extratos superiores de renda);
entretanto, em séries temporais essa correlação não
existe: a proporção de pessoas se
declarando felizes permanece constante.
O primeiro caso não surpreende,
até certo ponto, na medida em que sair da
pobreza e ampliar a capacidade de
acesso a bens e serviços é sempre um motivo de
alívio e satisfação. O segundo
resultado é algo paradoxal (o “paradoxo de
Easterlin”), mas pode ser
explicado, segundo Abramovitz (1993), por um conjunto
de fatos psico-culturais. Um dos
mais importantes seria o fato de que a satisfação
que cada indivíduo obtém com o
aumento de sua capacidade de consumo é relativa
à capacidade de consumo dos
demais concidadãos; ou seja, se a renda aumenta para
a sociedade como um todo, a
percepção do aumento da capacidade de consumo se
esvanece. Assim, o cidadão
americano dos anos 90 embora tenha uma capacidade
20 Texto para Discussão.
IE/UNICAMP, Campinas, n. 102, set. 2001.
de consumo muito superior à de
seu avô ou bisavô, não a percebe como algo para
fazê-lo mais feliz por isso.
Outro fato apontado refere-se à
teoria psicológica contemporânea, segundo
a qual tanto animais como seres
humanos encontram prazer na ação ou experiência
nova, e não na rotina. Para os
humanos a aquisição de um novo bem pode produzir
também esta sensação. O problema
está, então, em que esta sensação desaparece
com o uso rotineiro do bem
adquirido. A implicação perturbadora desta teoria é que
ela diz que o nível de satisfação
não depende (ou pelo menos não depende somente)
do nível de renda mas do seu
crescimento. Tudo o mais constante, nós teríamos que
crescer cada vez mais rápido se
quisermos ser mais felizes ou manter-nos crescendo
de modo a ficar no mesmo lugar.
É preciso considerar também, como
um fato importante, que o aumento
geral do nível de renda eleva os
preços do espaço e do tempo, de modo que a
família média com a renda se
elevando não poderá nunca consumir muito mais de
espaço-tempo do que ela consumia
antes ou que imaginava poder consumir.
Provavelmente consumirá menos. A
pessoa média não importa quão rica ela se
torne não poderá nunca comandar o
serviço de outra pessoa média. Finalmente,
cabe notar que o aumento do preço
do tempo em relação ao dos bens direciona as
pessoas para o consumo que, além
de não as satisfazer por muito tempo, diminui a
disponibilidade tempo para as
atividades que, estas sim, seriam verdadeiramente
estimulantes e realizadoras, de
relacionamentos pessoais e sociais, desenvolvimento
intelectual, artístico, cultural,
etc.
No que se refere ao terceiro
fator, os protestos cada vez mais intensos
contra a globalização em cada
encontro entre chefes de Estado e/ou seus
representantes para discutir
temas correlatos vêm se tornando emblemáticos do
sentimento de que o sistema pode
ser eficiente mas não produz justiça. O
crescimento da afluência, a
amplificação mediática e, sobretudo o acesso à
informação séria e a
possibilidade de interação proporcionada pela Internet,
aumentaram em muito a proporção
da população que pode participar do que antes
era uma espécie de “alta cultura”
de contestação. Para muitos analistas isto mudou o
papel da cultura adversária na
sociedade contemporânea, provocando a uma
disjunção inédita entre economia
e cultura.
Esse quadro geral já deu origem a
uma mudança importante no
funcionamento das instituições
com o crescimento do peso do que se convencionou
chamar de terceiro setor (social
empowerment) no processo de tomada de
Texto para Discussão. IE/UNICAMP,
Campinas, n. 102, set. 2001. 21
decisões.10 Sua atuação, por sua
vez, tem sido extremamente importante também
para o aprofundamento do processo
de conscientização ecológica e da conseqüente
mudança de valores culturais que
esta conscientização tende a estimular. Nesse
sentido, estão sendo criadas as
condições objetivas que vão permitir o surgimento
de novas instituições capazes de
impor restrições ambientais que atinjam mais
profundamente a racionalidade
econômica atual. Um exemplo disso é a
possibilidade de aplicação do
chamado “princípio de precaução”, que será discutido
na próxima seção.
4 Dinâmica da tomada de decisões
sob incerteza
Como mostra Ewald (1997), as
circunstâncias históricas que explicam a
emergência do Princípio da
Precaução começam com a mudança da percepção de
risco da população decorrente da
crescente complexidade da civilização industrial.
Durante o século XIX a obrigação
moral de cada cidadão em relação a si próprio e
aos demais concidadãos era vista
como mais importante do que as obrigações
jurídicas. O cidadão virtuoso era
responsável e prudente no uso de sua liberdade o
que implicava, para começar,
tomar as necessárias providências para proteger a ele
e a sua família. Em relação aos
demais concidadãos ele devia o respeito e o
sentimento de responsabilidade
moral de ajudar em caso de necessidade. Estava
claro, de qualquer modo, que se
uma pessoa de desse mal na vida ela não poderia
culpar ninguém nem a sociedade
por sua desgraça. As vítimas de infortúnios,
independentemente dos sentimentos
de compaixão que pudessem despertar, eram
sempre supostas serem os únicos
atores de seu destino, devendo agir em
conseqüência sendo prudentes.
Durante o século XX, com o
sistema de seguridade social, as obrigações
legais tenderam a se tornar mais
importantes que as obrigações morais. Um
conjunto de novos direitos
sociais emergiu do sentimento crescente de que cada
cidadão possuía uma espécie de
direito geral de ser compensado pelos danos
resultantes de quase todo tipo de
eventos em sua vida. Esta nova maneira de pensar
resultou em grande medida de um
sentimento utópico em relação à capacidade da
ciência e da tecnologia de prever
e controlar todos os riscos. Foi o que permitiu a
estruturação de sistemas de
proteção social, que se baseiam na presunção de que
(10) Opschoor (1992) propõe
substituir a dicotomia mercado-governo pela tricotomia: transações (que
inclui o mercado) – força social
(empowerment) – governo. Somente desse modo seria possível criar
estruturas
institucionais eficientes, isto
é, capazes de redirecionar o crescimento econômico no sentido da
sustentablidade.
22 Texto para Discussão.
IE/UNICAMP, Campinas, n. 102, set. 2001.
todos os riscos são mensuráveis.
Desse modo, um sentimento de solidariedade
social baseado em riscos
mensuráveis substituiu o sentimento individual de
obrigação moral.
Os acidentes de trabalho, por
exemplo, passaram a ser considerados como
fatores de risco mensuráveis, e
não eventos singulares que resultam de erros
individuais. Foi esta noção que
induziu a uma nova visão jurídica que estabeleceu o
direito de ser indenização pelo
fato em si mesmo, independentemente de suas
causas; ou seja, a
responsabilidade pessoal do indivíduo não é questionada. Nesse
sentido, o problema da igualdade
foi reformulado em termos econômicos e não
mais morais.
No ultimo quartel do século XX,
entretanto, esta estrutura institucional se
tornou progressivamente
inadequada em face dos novos riscos decorrentes do
funcionamento das sociedades
industriais complexas os quais, especialmente os
relacionados ao meio ambiente,
são impossíveis de serem mensurados pela ciência.
A noção de incerteza substituiu a
noção de probabilidade, o que significa uma
admissão da incapacidade da
sociedade em prever perdas catastróficas irreversíveis.
A ciência se tornou
crescentemente questionada pelo fato de levantar, nesses casos,
mais dúvidas do que propor
soluções. Foi isto que levou a sociedade a buscar
segurança em meio à incerteza
através do Princípio da Precaução.
A aplicação desse princípio tem
por objetivo precisamente tratar de
situações onde é necessário
considerar legítima a adoção por antecipação de
medidas relativas a uma fonte
potencial de danos sem esperar que se disponha de
certezas científicas quanto às
relações de causalidade entre a atividade em questão e
o dano temido. 11 Esta postura
representa efetivamente uma ruptura com as práticas
anteriores de prevenção que
tinham o conhecimento racional por fundamento (o
arsenal científico e tecnológico
da ciência normal). A Precaução, ao contrário,
implica tomar uma certa distância
em relação à ciência e a tecnologia. Reflete
efetivamente a constatação de que
não se pode ter o controle total (ou quase) de
acidentes e problemas que não são
decorrências estatísticas regulares do próprio
funcionamento do sistema,
tratáveis via sistemas de seguros, mas representam
situações e problemas onde
predomina o sentimento da singularidade e
irreparabilidade.
(11) Ou como coloca Perrings
(1991), o tipo de decisão à qual se aplica o Princípio da Precaução é aquela
para a qual a distribuição de
probabilidades dos resultados futuros não pode ser conhecida com confiança.
Texto para Discussão. IE/UNICAMP,
Campinas, n. 102, set. 2001. 23
Para um melhor entendimento das
dificuldades e hesitações sobre como
interpretar o Princípio de
Precaução, Godard (1997) assinala que é preciso
considerar que a mutação, ainda
não plenamente assumida, da compreensão do
status dos conhecimentos
científicos (mutação essa da qual esse Princípio é uma das
causas), implica o abandono da
crença positivista em uma ciência que reflete o
mundo objetivo e sua substituição
por concepções que fazem da ciência , antes de
mais nada, uma componente da
cultura humana, marcada de escolhas e
compromissos de natureza
ético-social no próprio cerne da constituição dos
conhecimentos. Nesse sentido, uma
concepção positivista da Precaução conduziria
a um impasse prático. Mas ao
mesmo tempo ficam claros os erros que são
cometidos quando o projeto da
racionalidade positiva é totalmente afastado.
Portanto esse Princípio se situa
na articulação de duas lógicas opostas: de
um lado, se encontra reafirmada a
busca do enraizamento da inovação tecnológica e
da ação econômica no conhecimento
científico dos riscos de modo a que as
decisões públicas sejam tomadas
em todo conhecimento de causa; por outro lado, se
reconhece a incapacidade
freqüente do conhecimento científico em fornecer em
tempo hábil as bases adequadas
para uma decisão pública positivamente ou
substantivamente racional,
fundada sobre provas científicas. Por esta razão a
Precaução é freqüentemente
interpretada como um meio de restaurar a primazia do
político na definição dos
problemas e na oportunidade de engajar uma ação pública.
A primeira das duas lógicas leva
ao aumento da necessidade de
informações científicas para as
decisões coletivas e, por conseguinte, a uma maior
responsabilidade e capacidade de
influência dos cie ntistas. A segunda à necessidade
de maior ingerência da sociedade
nos assuntos científicos (a intrusão do judiciário
nos assuntos científicos, uma
maior importância dos trabalhos de sociologia da
ciência, etc.), tornando a
ciência submetida de modo mais in tenso às estratégias de
influência ou de cooptação. A
única maneira de evitar um impasse entre essas duas
lógicas opostas é, portanto,
buscar soluções de compromisso que envolvam todas a
partes interessadas.
As circunstâncias que justificam
a adoção do princípio da precaução podem
ser melhor compreendidas através
de uma analogia, proposta por J. C. Hourcade
(1997), que compara o
comportamento de dois motoristas em situações distintas:
aquele do piloto de fórmula 1
diante de uma série de curvas na pista de corrida com
aquele do motorista numa estrada
de montanha no inverno. A “função objetiva” do
piloto de fórmula 1é maximizar a
velocidade num contexto de incertezas não
desprezíveis em relação, por
exemplo, à presença ou não de óleo ou areia na curva,
24 Texto para Discussão.
IE/UNICAMP, Campinas, n. 102, set. 2001.
à aderência dos pneus ou ao
comportamento do piloto da frente. Mas sua decisão
depende de sua experiência
acumulada, a qual lhe confere um tipo de conhecimento
estatístico e, nesse sentido, seu
comportamento seria similar a um cálculo de
otimização: ele opta desde logo
por uma dada trajetória que ele considera ótima
tendo em conta, implicitamente, a
distribuição de probabilidades sobre parâmetros
incertos, confiando na própria
experiência para permanecer no limite das
possibilidades de adaptação
permitidas por seus reflexos. Este comportamento
equivale à aplicação de uma
análise custo-benefício para decidir por uma dada
política ambiental.
No caso do motorista diante de
curvas numa estrada de montanha no
inverno, seu comportamento de
maximização será completamente diferente em
relação ao que teria numa pista
de corrida. Ele não irá escolher desde logo uma
dada trajetória que ele considere
ótima e ir em frente: os riscos são muito grandes,
pois ele não sabe se o que vai
limitar suas possibilidades de adaptação numa curva
sobre um precipício será uma
pista escorregadia ou a vinda de outro carro no
sentido contrário; a distribuição
de probabilidades é desconhecida e a informação
útil (existência ou não de
problemas na pista ou vinda de veículo em sentido
contrário) pode chegar tarde
demais devido a inércia do veículo. Sua opção,
portanto, será um processo
seqüencial no qual as primeiras decisões visam a
aumentar o tempo disponível para
adquirir mais informações e ter tempo para
adaptar seu comportamento em
função da informação obtida: tirar o pé do
acelerador, frear ligeiramente e
ficar preparado para frear mais fortemente em caso
de necessidade ou acelerar no
caso contrário. Ou seja, ele age de modo a
harmonizar a velocidade do carro
com a melhoria da informação numa perspectiva
de aprendizagem. Esta é a
analogia correta para definir um comportamento
precavido em face de problemas
ambientais como aquele do “efeito estufa”, cuja
evolução a ciência deixa os
tomadores de decisão numa nuvem de incertezas, não
tendo respostas para a questão
central: se é verdade que o aquecimento global tem
origem antropogênica e que este
aquecimento não pode ser naturalmente revertido
(a controvérsia sobre estes dois
pontos está longe de acabar), qual o ritmo de
redução das emissões de carbono
necessário para evitar uma catástrofe?
Do ponto de vista da redução do
risco, o ideal seria mudar imediatamente a
matriz energética, de modo a
eliminar rapidamente a emissão de gases geradores do
efeito estufa. Do ponto de vista
político/econômico, entretanto, esta opção teria um
custo insuperável. A atitude
Precavida é, portanto, aquela de reduzir o máximo
possível as emissões, enquanto se aceleram
as pesquisas científicas destinadas a
Texto para Discussão. IE/UNICAMP,
Campinas, n. 102, set. 2001. 25
avaliar melhor os riscos
envolvidos e encontrar alternativas de energia limpa.
Entretanto, a definição do qual
seria este máximo possível é controvertida, opondo
considerações de ordem
político/econômica a considerações de ordem técnocientífica,
em meio a conflitos de interesses
entre grupos e países.
Em ultima instância, a decisão
sobre o quanto se irá pagar pela redução das
emissões dependerá da
solidariedade das gerações presentes, concentradas nos
países afluentes, em relação às
gerações futuras e às populações dos países pobres.
A relutância dos governos
americanos em relação ao Protocolo de Kyoto, por
exemplo, reflete em ultima
análise o sentimento de que a opinião pública americana
não aceitaria pagar este preço –
que implicaria, entre outras coisas, o aumento no
preço da gasolina!
Portanto, o processo de tomada de
decisões sobre a aplicação do Princípio
de Precaução não é simples, mas
exige certos tipos de procedimentos. Funtowicz &
Ravetz (1991) propõem uma
classificação e hierarquização destes procedimentos de
acordo com a importância do que
está em jogo e com o nível de incerteza sistêmica
(Figura 4). O caso do “efeito
estufa”, apresenta níveis “epistemológicos” de
incerteza (algo próximo da
ignorância), no sentido de que esta incerteza decorre da
incapacidade ciência de
eliminá-la ou reduzi-la a níveis razoáveis. Além disso, o
que está em jogo é algo muito
importante, que representa perdas catastróficas.
Neste caso, o procedimento de
tomada de decisão adequado deve ser baseado no
que eles chamam de ciência
“pós-normal”.
O “pós-normal” quer dizer além do
normal no sentido de que os
procedimentos usuais baseados na
ciência (“normal”) não são suficientes, embora
continuem necessários, para
orientar o processo de tomada de decisão. Funtowicz e
Ravetz propõem ampliar a
“comunidade de pares” para incluir, além de cientistas e
especialistas, outras partes
interessadas (stakeholders) que podem incluir desde
representantes de regiões e/ou
países que serão mais gravemente afetados pelos
impactos ambientais previstos de
um determinado problema (no caso, as
conseqüências do aquecimento da
terra), passando por jornalistas e outros agentes
que, embora não sejam cientistas,
podem ter informações relevantes (inclusive
cientificamente) para a tomada de
decisão. A consideração destas informações
representa a inclusão de “fatos
extendidos” (extended facts) que em circunstâncias
usuais ficariam de fora.
Uma vez que se chega a um
consenso sobre os limites para determinado
tipo de impacto, que neste caso
trata -se da definição das taxas de redução das
emissões, novas decisões se
impõem embora com níveis menores de incerteza:
26 Texto para Discussão.
IE/UNICAMP, Campinas, n. 102, set. 2001.
metodológica e técnica. A
incerteza metodológica, neste caso, ocorre por exemplo
quando se vai decidir entre as
opções de política energética de um país para atender
aos limites negociados. Ainda não
é uma decisão que se possa tomar como um
resultado incontestável de uma
análise científica, pois entram em jogo valores e
confiabilidade. É necessário
chegar a um compromisso de equilíbrio entre opções
tecno-científicas e os interesses
em jogo. Trata-se, portanto, de um processo que
exige “arte” além de ciência, um
tipo de “arte aprendida” como a medicina ou a
engenharia, a ser levado à cabo
por grupos de especialistas. Finalmente, a incerteza
técnica aparece em situações que
podem ser enfrentadas com o recurso a rotinas
padrão derivadas de estatísticas
e suplementadas por técnicas e convenções
desenvolvidas para cada campo em
particular como, por exemplo, no processo de
otimização de uma dada opção
energética.
Figura 4
O que está em jogo no processo de
decisão
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