quarta-feira, 8 de setembro de 2010

"El agua es  nuestra..."

(parte I)

Quarta-feira, 8 de setembro de 2010
coluna Empresa-Cidadã
por Paulo Márcio de Mello
 
► No dia 28 de julho, a Assembléia Geral das Nações Unidas declarou "o direito à água potável, limpa e segura, e ao saneamento como um direito humano que é essencial para o pleno gozo da vida e de todos os direitos humanos."
 
► A resolução recebeu 122 votos a favor, nenhum voto contra e 41 países abstiveram-se. As abstenções foram da Armênia, Austrália, Áustria, Bósnia e Herzegovina, Botswana, Bulgária, Canadá, Croácia, Chipre, Dinamarca, Eslováquia, Estados Unidos, Estônia, Etiópia, Grécia, Guiana, Islândia, Irlanda, Israel, Japão, Kazakhstan, Quênia, Látvia, Lesoto, Lituânia, Luxemburgo, Malta, Holanda, Nova Zelândia, Polônia, República da Coréia, República da Moldova, República Tcheca, Romênia, Suécia, Trinidad e Tobago, Turquia, Ucrânia, Reino Unido, República Unida da Tanzânia e Zâmbia.
 
► Estima-se que cerca de 1,1 bilhão de pessoas não têm acesso à água potável (no Brasil, são cerca de 40 milhões) e 2,5 bilhões de pessoas não são atendidas por serviços de saneamento (100 milhões de brasileiros). Em consequência, mais de duas crianças morrem a cada minuto, por doenças de veiculação hídrica, isto é, complicações decorrentes da falta de qualidade da água.
 
► O investimento anual para corrigir, até 2025, a falta de saneamento no mundo, é estimado em US$ 9,5 bilhões. Este investimento resultaria em US$ 66,5 bilhões de economia em dispêndios, hoje realizados na solução dos problemas de saúde decorrentes da falta de saneamento e que, a cada ano, subtraem 5 bilhões de dias de trabalho e 443 milhões de dias de aula.
 
► A resolução da ONU, apesar de discorrer sobre o óbvio, a água como direito fundamental, fortalece a discussão sobre a transformação do direito à água em "commodity" 
► O modelo econômico consumista e que ameaça com a privatização de fontes de água, mananciais, barragens e hidrovias, em escala mundial, é assim questionado. A insegurança hídrica dele resultante é questionada também no comprometimento da potabilidade, em consequência da emissão de efluentes e disposição inadequada de resíduos.
 
► A indisponibilidade de água para tamanha população, no entanto, resulta também do mau uso, representando mais do que mera disponibilização de "recursos financeiros, capacitação e tecnologia, através de ajuda e cooperação internacional, em particular aos países em desenvolvimento," como prevê a resolução, em seu artigo segundo.
 
► Cerca de 70% do consumo total de água é para o uso agropecuário, onde a substituição das formas onerosas de abastecimento, como a dos pivôs centrais, por sistemas mais adequados de irrigação (canaletas e gotejamento, por exemplo) esbarra em interesses políticos. O consumo pessoal, frequentemente acusado de desperdício, responde por apenas 2% do consumo total.
 
► Outras formas menos evidentes de privatização deste direito fundamental, mas tão importantes quanto, estão representadas pela extração de madeira de florestas ou pela conversão de florestas para a agricultura ou para a criação de gado em grande escala. São casos também da mineração e da exploração de petróleo, na medida em que os produtos químicos usados ou liberados nestas atividades, interferem na disponibilidade de água potável.
 
► Outras formas de apropriação privada derivam de reflorestamentos econômicos, que consomem grandes quantidades de água diárias, ou do resfriamento e congelamento requerido na comercialização de carnes.
 
► O modo de produção predominante distancia-se do sistema ambiental, exigindo de governos, instituições, comunidades, cientistas e agentes econômicos a gestão democrática das externalidades negativas, inerentes a uma sociedade baseada no consumo exagerado e conseqüente pressão sobre os recursos naturais.

► Nenhuma atividade econômica que venha a comprometer os recursos hídricos pode mais ser aceita e já há registros de lutas exemplares contra empresas que dilapidam este patrimônio e direito fundamental. É o caso da Guerra pela Água, iniciada em 1999.

paulo márcio de mello
professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro 
 
(continua)
"El agua es nuestra..."
(parte II)
 
Quarta-feira, 15 de setembro de 2010
coluna Empresa-Cidadã
por Paulo Márcio de Mello
 
► A água, em julho passado, declarada direito humano essencial pela Assembléia Geral da ONU, vem sendo alvo de corporações que procuram dela se apropriar. Há casos de resistência cidadã, porém. Entre lutas importantes para religar a economia ao bem comum, uma das mais significativas foi a Guerra pela Água, em Cochabamba (Bolívia).

► Em 1996, o Banco Mundial prometeu àquela municipalidade boliviana um empréstimo de US$ 14 milhões, para expandir o serviço de água. "Tão bonzinho", o Banco Mundial condicionou o empréstimo à privatização do fornecimento água da cidade.
 
► Em setembro de 1999, em um processo silencioso, a água de Cochabamba foi arrendada, até 2039, para uma nova empresa chamada Aguas del Tunari. Logo se identificou que se tratava de testa de ferro da gigantesca corporação Bechtel, da Califórnia (EUA). O contrato assegurava o lucro assombroso de 16%, a cada um dos 40 anos contratados.
 
► A resistência popular foi se organizando, sob a denominação de La Coordinadora para a Defesa da Água e da Vida. A liderança era composta por representantes do sindicato dos trabalhadores de uma fábrica local, irrigadores, fazendeiros, grupos ambientalistas, economistas, alguns membros do Congresso e de organizações populares.

► Apesar de manifestações de protesto, em janeiro de 2000, a Bechtel aplicou um tarifaço de 200% sobre o serviço de água. A população reagiu com uma greve geral de três dias. Uma faixa foi fixada na sede provisória de La Coordinadora, anunciando "El Agua es Nuestra, Carajo!"
 
► A população então deixou de recolher a tarifa de água e se manifestou publicamente. O governo reagiu com o uso violento de tropas, trazidas de outras regiões, dando início a uma ebulição que parou novamente Cochabamba, resultando na renúncia do governador, prisões, lei marcial, censura, pressão internacional sobre o CEO da Bechtel, Riley Bechtel e no assassinato do jovem Victor Hugo Daza.
 
► Até que o governo central capitulou, anunciando o cancelamento do contrato e a fuga do país dos executivos da Bechtel. La Coordinadora e o governo indicaram os dirigentes da nova companhia de água de Cochabamba, SEMAPA.
 
► Parecia um final feliz, menos para a Bechtel. Em novembro de 2001, a multinacional da água reiniciou a guerra, ao apresentar uma demanda de $25 milhões de dólares contra a Bolívia, através do Banco Mundial, a mesma instituição que forçou a privatização.
 
► Uma vez mais, a resistência organizada inibiu a investida da Bechtel. Em agosto de 2002, lideranças populares de 41 países apresentaram a Petição Internacional de Cidadãos ao Banco Mundial, requerendo transparência nas decisões.
 
► Pragmático, o Banco Mundial não prosseguiu com o processo, possivelmente percebendo que o mesmo mecanismo acionado pela Bechtel contra a Bolívia poderia ser mobilizado por outras empresas, buscando indenizações por leis ambientais, sanitárias ou trabalhistas, a pretexto de derrubar barreiras ao livre comércio.
 
► O Brasil, país rico em água, com aquíferos significativos, como O Guarani (no Centro Sul) e Alter do Chão (na Amazônia), também apresenta registros de luta por este direito fundamental, caso da Campanha da Fraternidade de 2004. Desde então, o movimento social tem procurado compensar as participações oficiais brasileiras nos Fóruns Mundiais da Água, subordinadas aos interesses que tratam a água como mais uma "commodity".
 
paulo márcio de mello
professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro 
 
A coluna EMPRESA-CIDADÃ é publicada, desde 2001,
toda quarta-feira, no jornal Monitor Mercantil (www.monitormercantil.com.br).
Através dela, são apresentados conceitos relativos
à responsabilidade social, à sustentabilidade e ao desenvolvimento sustentável,
casos de empreendedores e empresas, pesquisas, resenhas, editais ou agenda.