A crise econômica: eles hoje, nós
amanhã
Nesta
matéria, publicada na revista CIÊNCIA HOJE, nº: 289, janeiro/fevereiro de 2012,
o autor afirma que “Há crise real quando o processo de geração de renda e
emprego apresenta significativa desaceleração ou retrocesso (recessão)”.
blog do professor paulo márcio
economia&arte
Por Reinaldo
Gonçalves
Professor Titular. Instituto de
Economia, Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Há risco crescente de que o número de
países atingidos por crises econômicas aumente. No entanto, o cenário mais
provável é que os Estados Unidos e os principais países desenvolvidos da Europa
saiam da crise atual no médio prazo. O Brasil, porém, tende a ser atingido por
crise se não ocorrerem mudanças significativas na estratégia e na política
econômicas. Assim, o cenário atual parece indicar que as locomotivas voltarão
para os trilhos e o vagão de terceira classe descarrilará mais uma vez.
Crise é a irmã mais nova da
instabilidade. Ela é filha natural do capitalismo. Instabilidade, no
capitalismo, significa alternância de situações de prosperidade e crise. Os
economistas chamam esses fenômenos de fases – ascendente e descendente – do
ciclo econômico. Na fase descendente, surge a crise econômica, que é a perda ou
risco crescente de perda de renda e bem-estar por parte de parcela expressiva
da sociedade. Crise, portanto, é fase difícil ou grave da evolução dos
processos, estruturas e relações econômicas.
Há crise real quando o processo de
geração de renda e emprego apresenta significativa desaceleração ou retrocesso
(recessão). Há crise financeira quando as estruturas de financiamento de
indivíduos e empresas são rompidas ou não funcionam de modo adequado. Isto é,
ocorrem problemas graves nos bancos e mercado de capitais. Há crise fiscal
quando o governo tem dificuldade para expandir a dívida pública (mercado de
títulos públicos). Há crise cambial ou de contas externas quando relações
comerciais e financeiras com outros países são restringidas, o que impede a
geração de renda no país e o financiamento dos gastos no exterior.
Crises no capitalismo também ocorrem
porque a ânsia de riqueza e renda (fenômeno também chamado de ‘espírito animal’
do capitalista) gera variações extraordinárias de preços de bens (petróleo e
outros), moedas (dólar, euro, etc) e ativos financeiros (ações e outros) e
reais (exemplo, imóveis). O aumento extraordinário de preços é conhecido como
formação de ‘bolhas’.
O resultado da especulação é que as
‘bolhas’ explodem quando há reversão de expectativas e, nesse momento, há
eclosão de crise. Riquezas desaparecem de um dia para outro. Os que perderam
riqueza contraem seus gastos, os endividados quebram, os trabalhadores são
demitidos e o lucro do capitalista desaparece.
A principal causa da atual crise
econômica internacional é a ruptura do sistema de financiamento de imóveis nos
Estados Unidos em 2007 e 2008. Naquele país, houve ampla oferta de
financiamento para a compra de imóveis, inclusive para aqueles sem poupança ou
renda adequadas (crédito subprime, ou grande risco de crédito). A onda de
inadimplência – calote – levou à queda dos preços dos imóveis (38% entre junho
de 2006 e junho de 2011) e à quebra de parte do sistema financeiro da maior
economia do mundo em 2008 e 2009.
Entretanto, crises econômicas também
são causadas por erros de política de governo que, em geral, atendem grupos de
interesses capitalistas. Houve avanço significativo de liberalização e
desregulamentação financeira mundial nas duas últimas décadas. Esse processo
implicou crescimento extraordinário dos fluxos internacionais de capitais, e
isso interconectou os diversos sistemas financeiros nacionais. Com essa
interdependência, problemas graves em um país importante como os Estados Unidos
são transmitidos para o resto do mundo. Portanto, vários governos erraram
quando tomaram decisões que promoveram essa liberalização financeira
internacional.
Governos também erram quando estimulam
uma expansão extraordinária do crédito e, portanto, do endividamento de
indivíduos e empresas. Ou quando elevam a dívida pública para níveis
insustentáveis. Ou ainda quando deixam em níveis inadequados, por muito tempo,
variáveis macroeconômicas fundamentais, como taxa de juro e taxa de câmbio. Os
governos dos Estados Unidos, de países da Europa e do Brasil cometeram esses
erros nos últimos anos – se não todos, ao menos alguns.
Evidentemente, há outras causas de
crises econômicas que não são próprias do capitalismo. É o caso dos desastres
naturais. Quebras de produção agrícola, terremotos, maremotos e guerras ocorrem
em qualquer sistema econômico. Para ilustrar, basta lembrar que o Japão deve
sofrer queda de renda em decorrência do terremoto e do tsunami ocorridos em
março de 2011.
Tipos
de crise
Crises econômicas têm quatro
manifestações distintas: real, financeira, fiscal e cambial. A grande maioria
das crises capitalistas são crises reais, ou seja, resultam da volatilidade do
comportamento dos capitalistas quanto às decisões de investimento produtivo. Há
crise real quando a redução dos investimentos trava a geração de renda e
emprego. Também há a crise financeira, como a que aconteceu nos Estados Unidos
em 2008 e resultou da quebra do mercado subprime de imóveis. A crise financeira
gerou crise real: a taxa de desemprego praticamente dobrou nos últimos cinco
anos naquele país, e está previsto fraco desempenho econômico em 2011 e 2012.
A crise fiscal se manifesta quando o
governo tem dificuldade para financiar seus gastos, em função do elevado nível
de endividamento público, entre outros fatores. A crise atual na Europa é
marcada pela grande dificuldade que governos de países como Grécia, Portugal e
Irlanda enfrentam para pagar sua dívida pública e obter novos empréstimos. Em
geral, a crise fiscal é precedida por crescimento extraordinário dos gastos
públicos, seja para financiar infraestrutura (como as obras das Olimpíadas em
Atenas, na Grécia, em 2004), seja para enfrentar crises financeiras e crises
reais (o que ocorreu a partir de 2008).
Os países em desenvolvimento sofrem, em
particular, crise cambial. Nesse caso, ocorre o problema de dificuldade de
obtenção de financiamento externo, que provoca elevação extraordinária da taxa
de câmbio (desvalorizando a moeda nacional). Isso ocorreu no Brasil no segundo
semestre de 2008, logo após a eclosão da crise financeira nos Estados Unidos: a
taxa de câmbio (valor do dólar) saltou de R$ 1,70 em julho para mais de R$ 2,50
em dezembro. Em consequência, grandes empresas (Sadia e Aracruz) e bancos
(Unibanco e Votorantim) tiveram sérios problemas, que resultaram em fusões e
aquisições. As crises cambial e financeira provocaram crise real, visto que a
renda per capita brasileira caiu 1,8% em 2009.
Nos países desenvolvidos, a situação
atual é de séria crise econômica. Na Europa, há desaceleração do crescimento da
renda e, portanto, risco de crise real ainda maior no futuro próximo. Os
índices de desemprego estão muito elevados em inúmeros países. Há séria crise
fiscal com altos níveis de endividamento público. Há ainda riscos quanto à
saúde do sistema financeiro: os bancos estão muitos expostos, porque
emprestaram muito para indivíduos, empresas e governos que agora estão com
dificuldades para saldar seus compromissos.
Nos Estados Unidos, há crise real com
forte perda de confiança e, portanto, expectativas desfavoráveis que
comprometem o investimento privado e a geração de emprego. Também se prevê
desaceleração do crescimento econômico naquele país. Há ainda problemas
remanescentes da crise do subprime hipotecário, pois as dívidas de hipotecas
imobiliárias que foram renegociadas ainda podem se transformar em calote. E as
dificuldades do governo em relação ao endividamento público têm sido
crescentes. Portanto, Estados Unidos e Europa combinam elementos de crise real,
financeira e fiscal. O Japão, por sua vez, é o país desenvolvido com maior
nível relativo de endividamento público.
Nos países emergentes, a situação é
bastante diferente, embora existam fatores comuns, como os riscos decorrentes
da desaceleração do comércio internacional e da volatilidade dos fluxos
financeiros internacionais. Países como a China, por um lado, se protegem com
elevados níveis de competitividade internacional e baixa dependência em relação
a recursos financeiros externos. No Brasil, por outro, esses riscos são
particularmente elevados, porque o país depende significativamente da
exportação de produtos básicos (minério de ferro, carne, soja e outros) e da
captação de recursos externos para sustentar seu crescente e elevado déficit
nas contas externas (as transações comerciais, de serviços e financeiras com os
outros países). Ou seja, as despesas do Brasil em moedas estrangeiras é maior
do que as suas receitas. Em 2010 o país precisou captar US$ 48 bilhões para
fechar suas contas externas. Em 2011 este “buraco” pode superar US$ 55 bilhões.
Portanto, há crescente risco de crise cambial, que tende a causar crises
financeira, real e fiscal.
Meios
de superação
Se, por um lado, é certo que
instabilidade e crise são próprias ao capitalismo, também é verdadeiro que esse
sistema econômico desenvolveu mecanismos para superar crises. Por esta e outras
razões, o capitalismo, marcado por desperdício, injustiça e instabilidade,
sobrevive e avança há séculos. Nos últimos três anos, os principais países desenvolvidos
perderam graus de liberdade na aplicação de políticas macroeconômicas
convencionais (redução de juros e aumento de gastos públicos). Entretanto,
esses países dispõem de pelo menos quatro instrumentos de grande impacto na economia:
progresso técnico, competitividade internacional,
distribuição de renda e guerra.
Portanto, pode-se prever, de modo otimista, que os principais países
capitalistas retomarão a fase ascendente em médio prazo (de dois a três anos).
Este argumento aplica-se às principais economias capitalistas do mundo (EUA, Alemanha,
França e Japão). É bem verdade que economias pouco importantes (Grécia,
Portugal, etc) continuarão em crise.
O progresso técnico implica aumento de
produtividade e lançamento de novos produtos, que elevam a massa de lucros. Há,
então, estímulo para os investimentos dos capitalistas. A competitividade
internacional permite vender mais produtos no mercado internacional. A guerra
impulsiona os gastos bélicos e, portanto, a geração de renda e emprego, além de
estimular o progresso tecnológico. Nesse sentido, Afeganistão, Iraque e Líbia
são oportunidades extraordinárias, além de outras que podem ser criadas. E o
processo de distribuição de riqueza e renda gera ampliação do consumo dos
trabalhadores. Entretanto, é pouco provável que ocorra este processo no
horizonte previsível. Muito pelo contrário, parte expressiva do ajuste frente
às crises deve recair sobre os grupos de menor renda.
Países em desenvolvimento, como o
Brasil, em geral não dispõem desses instrumentos. A exceção é a distribuição de
renda com base em políticas assistencialistas, benefícios da previdência e salário
mínimo, que levam a aumento do consumo. O Brasil, além disso, apresenta
crescente déficit nas contas externas e elevado passivo externo (o montante
aplicado no país por estrangeiros é quatro vezes maior que as reservas
internacionais brasileiras).
Portanto, o país está preso a uma
trajetória de crescente risco de crise cambial que, invariavelmente, resulta em
crises real, financeira e fiscal. Em síntese, o cenário mais provável no médio
prazo é, por um lado, os Estados Unidos e países europeus importantes saírem da
crise. Por outro, se não houver mudanças significativas de estratégias e
política, o Brasil, país marcado por enormes fragilidades e vulnerabilidades,
tende a sofrer crise cambial e afundar em crises de todos os tipos. As
locomotivas voltam para os trilhos e o vagão de 3ª classe descarrila mais uma
vez.