domingo, 1 de junho de 2014

A crise econômica: eles hoje, nós amanhã
                                                  
 
Nesta matéria, publicada na revista CIÊNCIA HOJE, nº: 289, janeiro/fevereiro de 2012, o autor afirma que “Há crise real quando o processo de geração de renda e emprego apresenta significativa desaceleração ou retrocesso (recessão)”.
 
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Por Reinaldo Gonçalves
Professor Titular. Instituto de Economia, Universidade Federal do Rio de Janeiro.
 
Há risco crescente de que o número de países atingidos por crises econômicas aumente. No entanto, o cenário mais provável é que os Estados Unidos e os principais países desenvolvidos da Europa saiam da crise atual no médio prazo. O Brasil, porém, tende a ser atingido por crise se não ocorrerem mudanças significativas na estratégia e na política econômicas. Assim, o cenário atual parece indicar que as locomotivas voltarão para os trilhos e o vagão de terceira classe descarrilará mais uma vez.
 
Crise é a irmã mais nova da instabilidade. Ela é filha natural do capitalismo. Instabilidade, no capitalismo, significa alternância de situações de prosperidade e crise. Os economistas chamam esses fenômenos de fases – ascendente e descendente – do ciclo econômico. Na fase descendente, surge a crise econômica, que é a perda ou risco crescente de perda de renda e bem-estar por parte de parcela expressiva da sociedade. Crise, portanto, é fase difícil ou grave da evolução dos processos, estruturas e relações econômicas.
 
Há crise real quando o processo de geração de renda e emprego apresenta significativa desaceleração ou retrocesso (recessão). Há crise financeira quando as estruturas de financiamento de indivíduos e empresas são rompidas ou não funcionam de modo adequado. Isto é, ocorrem problemas graves nos bancos e mercado de capitais. Há crise fiscal quando o governo tem dificuldade para expandir a dívida pública (mercado de títulos públicos). Há crise cambial ou de contas externas quando relações comerciais e financeiras com outros países são restringidas, o que impede a geração de renda no país e o financiamento dos gastos no exterior.
 
Crises no capitalismo também ocorrem porque a ânsia de riqueza e renda (fenômeno também chamado de ‘espírito animal’ do capitalista) gera variações extraordinárias de preços de bens (petróleo e outros), moedas (dólar, euro, etc) e ativos financeiros (ações e outros) e reais (exemplo, imóveis). O aumento extraordinário de preços é conhecido como formação de ‘bolhas’.
 
O resultado da especulação é que as ‘bolhas’ explodem quando há reversão de expectativas e, nesse momento, há eclosão de crise. Riquezas desaparecem de um dia para outro. Os que perderam riqueza contraem seus gastos, os endividados quebram, os trabalhadores são demitidos e o lucro do capitalista desaparece.
 
A principal causa da atual crise econômica internacional é a ruptura do sistema de financiamento de imóveis nos Estados Unidos em 2007 e 2008. Naquele país, houve ampla oferta de financiamento para a compra de imóveis, inclusive para aqueles sem poupança ou renda adequadas (crédito subprime, ou grande risco de crédito). A onda de inadimplência – calote – levou à queda dos preços dos imóveis (38% entre junho de 2006 e junho de 2011) e à quebra de parte do sistema financeiro da maior economia do mundo em 2008 e 2009.
 
Entretanto, crises econômicas também são causadas por erros de política de governo que, em geral, atendem grupos de interesses capitalistas. Houve avanço significativo de liberalização e desregulamentação financeira mundial nas duas últimas décadas. Esse processo implicou crescimento extraordinário dos fluxos internacionais de capitais, e isso interconectou os diversos sistemas financeiros nacionais. Com essa interdependência, problemas graves em um país importante como os Estados Unidos são transmitidos para o resto do mundo. Portanto, vários governos erraram quando tomaram decisões que promoveram essa liberalização financeira internacional.
 
Governos também erram quando estimulam uma expansão extraordinária do crédito e, portanto, do endividamento de indivíduos e empresas. Ou quando elevam a dívida pública para níveis insustentáveis. Ou ainda quando deixam em níveis inadequados, por muito tempo, variáveis macroeconômicas fundamentais, como taxa de juro e taxa de câmbio. Os governos dos Estados Unidos, de países da Europa e do Brasil cometeram esses erros nos últimos anos – se não todos, ao menos alguns.
 
Evidentemente, há outras causas de crises econômicas que não são próprias do capitalismo. É o caso dos desastres naturais. Quebras de produção agrícola, terremotos, maremotos e guerras ocorrem em qualquer sistema econômico. Para ilustrar, basta lembrar que o Japão deve sofrer queda de renda em decorrência do terremoto e do tsunami ocorridos em março de 2011.
 
Tipos de crise
 
Crises econômicas têm quatro manifestações distintas: real, financeira, fiscal e cambial. A grande maioria das crises capitalistas são crises reais, ou seja, resultam da volatilidade do comportamento dos capitalistas quanto às decisões de investimento produtivo. Há crise real quando a redução dos investimentos trava a geração de renda e emprego. Também há a crise financeira, como a que aconteceu nos Estados Unidos em 2008 e resultou da quebra do mercado subprime de imóveis. A crise financeira gerou crise real: a taxa de desemprego praticamente dobrou nos últimos cinco anos naquele país, e está previsto fraco desempenho econômico em 2011 e 2012.
 
A crise fiscal se manifesta quando o governo tem dificuldade para financiar seus gastos, em função do elevado nível de endividamento público, entre outros fatores. A crise atual na Europa é marcada pela grande dificuldade que governos de países como Grécia, Portugal e Irlanda enfrentam para pagar sua dívida pública e obter novos empréstimos. Em geral, a crise fiscal é precedida por crescimento extraordinário dos gastos públicos, seja para financiar infraestrutura (como as obras das Olimpíadas em Atenas, na Grécia, em 2004), seja para enfrentar crises financeiras e crises reais (o que ocorreu a partir de 2008).
 
Os países em desenvolvimento sofrem, em particular, crise cambial. Nesse caso, ocorre o problema de dificuldade de obtenção de financiamento externo, que provoca elevação extraordinária da taxa de câmbio (desvalorizando a moeda nacional). Isso ocorreu no Brasil no segundo semestre de 2008, logo após a eclosão da crise financeira nos Estados Unidos: a taxa de câmbio (valor do dólar) saltou de R$ 1,70 em julho para mais de R$ 2,50 em dezembro. Em consequência, grandes empresas (Sadia e Aracruz) e bancos (Unibanco e Votorantim) tiveram sérios problemas, que resultaram em fusões e aquisições. As crises cambial e financeira provocaram crise real, visto que a renda per capita brasileira caiu 1,8% em 2009.
 
Nos países desenvolvidos, a situação atual é de séria crise econômica. Na Europa, há desaceleração do crescimento da renda e, portanto, risco de crise real ainda maior no futuro próximo. Os índices de desemprego estão muito elevados em inúmeros países. Há séria crise fiscal com altos níveis de endividamento público. Há ainda riscos quanto à saúde do sistema financeiro: os bancos estão muitos expostos, porque emprestaram muito para indivíduos, empresas e governos que agora estão com dificuldades para saldar seus compromissos.
 
Nos Estados Unidos, há crise real com forte perda de confiança e, portanto, expectativas desfavoráveis que comprometem o investimento privado e a geração de emprego. Também se prevê desaceleração do crescimento econômico naquele país. Há ainda problemas remanescentes da crise do subprime hipotecário, pois as dívidas de hipotecas imobiliárias que foram renegociadas ainda podem se transformar em calote. E as dificuldades do governo em relação ao endividamento público têm sido crescentes. Portanto, Estados Unidos e Europa combinam elementos de crise real, financeira e fiscal. O Japão, por sua vez, é o país desenvolvido com maior nível relativo de endividamento público.
 
Nos países emergentes, a situação é bastante diferente, embora existam fatores comuns, como os riscos decorrentes da desaceleração do comércio internacional e da volatilidade dos fluxos financeiros internacionais. Países como a China, por um lado, se protegem com elevados níveis de competitividade internacional e baixa dependência em relação a recursos financeiros externos. No Brasil, por outro, esses riscos são particularmente elevados, porque o país depende significativamente da exportação de produtos básicos (minério de ferro, carne, soja e outros) e da captação de recursos externos para sustentar seu crescente e elevado déficit nas contas externas (as transações comerciais, de serviços e financeiras com os outros países). Ou seja, as despesas do Brasil em moedas estrangeiras é maior do que as suas receitas. Em 2010 o país precisou captar US$ 48 bilhões para fechar suas contas externas. Em 2011 este “buraco” pode superar US$ 55 bilhões. Portanto, há crescente risco de crise cambial, que tende a causar crises financeira, real e fiscal.
 
Meios de superação
 
Se, por um lado, é certo que instabilidade e crise são próprias ao capitalismo, também é verdadeiro que esse sistema econômico desenvolveu mecanismos para superar crises. Por esta e outras razões, o capitalismo, marcado por desperdício, injustiça e instabilidade, sobrevive e avança há séculos. Nos últimos três anos, os principais países desenvolvidos perderam graus de liberdade na aplicação de políticas macroeconômicas convencionais (redução de juros e aumento de gastos públicos). Entretanto, esses países dispõem de pelo menos quatro instrumentos de grande impacto na economia: progresso técnico, competitividade internacional,
distribuição de renda e guerra. Portanto, pode-se prever, de modo otimista, que os principais países capitalistas retomarão a fase ascendente em médio prazo (de dois a três anos). Este argumento aplica-se às principais economias capitalistas do mundo (EUA, Alemanha, França e Japão). É bem verdade que economias pouco importantes (Grécia, Portugal, etc) continuarão em crise.
 
O progresso técnico implica aumento de produtividade e lançamento de novos produtos, que elevam a massa de lucros. Há, então, estímulo para os investimentos dos capitalistas. A competitividade internacional permite vender mais produtos no mercado internacional. A guerra impulsiona os gastos bélicos e, portanto, a geração de renda e emprego, além de estimular o progresso tecnológico. Nesse sentido, Afeganistão, Iraque e Líbia são oportunidades extraordinárias, além de outras que podem ser criadas. E o processo de distribuição de riqueza e renda gera ampliação do consumo dos trabalhadores. Entretanto, é pouco provável que ocorra este processo no horizonte previsível. Muito pelo contrário, parte expressiva do ajuste frente às crises deve recair sobre os grupos de menor renda.
 
Países em desenvolvimento, como o Brasil, em geral não dispõem desses instrumentos. A exceção é a distribuição de renda com base em políticas assistencialistas, benefícios da previdência e salário mínimo, que levam a aumento do consumo. O Brasil, além disso, apresenta crescente déficit nas contas externas e elevado passivo externo (o montante aplicado no país por estrangeiros é quatro vezes maior que as reservas internacionais brasileiras).
 
Portanto, o país está preso a uma trajetória de crescente risco de crise cambial que, invariavelmente, resulta em crises real, financeira e fiscal. Em síntese, o cenário mais provável no médio prazo é, por um lado, os Estados Unidos e países europeus importantes saírem da crise. Por outro, se não houver mudanças significativas de estratégias e política, o Brasil, país marcado por enormes fragilidades e vulnerabilidades, tende a sofrer crise cambial e afundar em crises de todos os tipos. As locomotivas voltam para os trilhos e o vagão de 3ª classe descarrila mais uma vez.