A rede do poder corporativo mundial
“Uma característica básica do poder corporativo
é o quanto é pouco conhecido.”
Assim diz o professor Ladislau Dowbor, autor deste
texto,
em que analisa o estudo realizado pelo ETH,
Instituto Federal Suíço de Pesquisa Tecnológica,
responsável por comprovar que 80% do controle
sobre o valor de todas as empresas transnacionais
é feito por apenas 737 atores (top holders), entre os quais,
há um núcleo duro constituído por 147 empresas,
que controla 40% do grupo.
blog
do professor paulo márcio
economia&arte
por Ladislau Dowbor
4 de janeiro de 2012
[http://criseoportunidade.wordpress.com/2011/11/22/a-rede-do-poder-corporativo-mundial-ladislau-dowbor]
“There
is a big difference between suspecting the existence of a fact
and in empirically demonstrating it”
Todos temos acompanhado, décadas a fio, as notícias
sobre grandes empresas comprando-se umas às outras, formando grupos cada vez
maiores, em princípio para se tornarem mais competitivas no ambiente cada vez
mais agressivo do mercado. Mas o processo, naturalmente, tem limites. Em geral,
nas principais cadeias produtivas, a corrida termina quando sobram poucas
empresas, que em vez de guerrear, descobrem que é mais conveniente se
articularem e trabalharem juntas, para o bem delas e dos seus acionistas. Não
necessariamente, como é óbvio, para o bem da sociedade.
Controlar de forma organizada uma cadeia produtiva
gera naturalmente um grande poder econômico, político e cultural. Econômico
através do imenso fluxo de recursos – maior do que o PIB de numerosos países –
político através da apropriação de grande parte dos aparelhos de Estado, e
cultural pelo fato da mídia de massa mundial criar, através de pesadíssimas
campanhas publicitárias, uma cultura de consumo e dinâmicas comportamentais que
lhes interessa, gerando boa parte dos problemas globais que enfrentamos.
Uma característica básica do poder corporativo, é o
quanto é pouco conhecido. As Nações Unidas tinham um departamento, UNCTC
(United Nations Center for Transnational Corporations), que publicava nos anos
1990 um excelente relatório anual sobre as corporações transnacionais. Com a
formação da Organização Mundial do Comércio, simplesmente fecharam o UNCTC e
descontinuaram as publicações. Assim, o que é provavelmente o principal núcleo
organizado de poder do planeta deixou simplesmente de ser estudado, a não ser
por pesquisas pontuais dispersas pelas instituições acadêmicas, e fragmentadas
por países ou setores.
O documento mais significativo que hoje temos sobre as
corporações é o excelente documentário A Corporação (The Corporation), estudo
científico de primeira linha, que em duas horas e doze capítulos mostra como
funcionam, como se organizam, e que impactos geram. Outro documentário
excelente, Trabalho Interno (Inside Job), que levou o Oscar de 2011, mostra como
funciona o segmento financeiro do poder corporativo, mas limitado
essencialmente a mostrar como se gerou a presente crise financeira. Temos
também o clássico do setor, Quando as Corporações Regem o Mundo (When
Corporations Rule the World) de David Korten. Trabalhos deste tipo nos
permitem entender a lógica, geram a base do conhecimento disponível.
Mas nos faz imensa falta a pesquisa sistemática sobre
como as corporações funcionam, como se tomam as decisões, quem as toma, com que
legitimidade. O fato é que ignoramos quase tudo do principal vetor de poder
mundial que são as corporações.
É natural e
saudável que tenhamos todos uma grande preocupação em não inventarmos
conspirações diabólicas, maquinações maldosas. Mas ao vermos como nos
principais setores as atividades se reduziram no topo a poucas empresas
extremamente poderosas, começamos a entender que se trata sim de poder
político. Agindo no espaço planetário,
na ausência de governo mundial, e frente à fragilidade do sistema
multilateral, manejam grande poder sem
nenhum contrapeso significativo.
A pesquisa do ETH (Instituto Federal Suíço de Pesquisa
Tecnológica) vem pela primeira vez nesta escala iluminar a área
com dados concretos. A metodologia é muito clara. Selecionaram 43 mil
corporações no banco de dados Orbis 2007 de 30 milhões de empresas, e passaram
a estudar como se relacionam: o peso econômico de cada entidade, a sua rede de
conexões, os fluxos financeiros, e em que empresas têm participações que
permitem controle indireto. Em termos estatísticos, resulta um sistema em forma
de bow-tie ¸ou “gravata borboleta”,
onde temos um grupo de corporações no “nó”, e ramificações para um lado que
apontam para corporações que o “nó” controla, e ramificações para outro que
apontam para as empresas que têm participações no “nó’.
A inovação, é que a pesquisa aqui apresentada realizou
este trabalho para o conjunto das principais corporações do planeta, e expandiu
a metodologia de forma a ir traçando o mapa de controles do conjunto, incluindo
a escada de poder que às vezes corporações menores detêm, ao controlarem um
pequeno grupo de empresas que por sua vez controla uma série de outras empresas
e assim por diante. O que temos aqui, é exatamente o que o título da pesquisa
apresenta, “a rede do controle corporativo global”.
Em termos ideológicos, o estudo está acima de qualquer
suspeita. Antes de tudo, é importante mencionar que o ETH de Zurich faz parte
da nata da pesquisa tecnológica no planeta, em geral colocado em segundo lugar
depois do MIT dos Estados Unidos. Os pesquisadores do ETH detêm 31 prêmios
Nobel, a começar por Albert Einstein. A equipe que trabalhou no artigo entende
tudo de mapeamento de redes e da arquitetura
que resulta. Stefano Battiston, um dos autores, assina pesquisas com J.
Stiglitz, ex-economista chefe do Banco Mundial. O presente artigo, com 10
páginas, é curto para uma pesquisa deste porte, mas é acompanhado de 26 páginas
de metodologia, de maneira a deixar transparentes todos os procedimentos. E em
nenhum momento tiram conclusões políticas apressadas: limitam-se a expor de
maneira muito sistemática o mapa do poder que resulta, e apontam as
implicações.
A pesquisa é de difícil leitura para não leigos, pela
matemática envolvida. Pela importância que representa para a compreensão de
como se organiza o poder corporativo do planeta, resolvemos expor da maneira
mais clara possível os principais aportes, ao mesmo tempo que disponibilizamos
abaixo o link do artigo completo. As notas que seguem podem ser vistas como uma
resenha expandida.
O que resulta da pesquisa é claro: “A estrutura da
rede de controle das corporações transnacionais impacta a competição de mercado
mundial e a estabilidade financeira. Até agora, apenas pequenas amostras
nacionais foram estudadas e não havia metodologia apropriada para avaliar
globalmente o controle. Apresentamos a primeira pesquisa da arquitetura da rede
internacional de propriedade, junto com a computação do controle que possui
cada ator global. Descobrimos que as corporações transnacionais formam uma
gigantesca estrutura em forma de gravata borboleta (bow-tie), e que uma grande parte do controle flui para um núcleo (core) pequeno e fortemente articulado de
instituições financeiras. Este núcleo pode ser visto como uma “super-entidade”
(super-entity) o que levanta questões
importantes tanto para pesquisadores como para os que traçam políticas.”(1)
Para demostrar como este travamento acontece, os
autores analisam a estrutura mundial do controle corporativo. O controle é aqui
definido como participação dos atores econômicos nas ações, correspondendo “às
oportunidades de ver os seus interesses predominarem na estratégia de negócios
da empresa”. Ao desenhar o conjunto da teia de participações, chega-se à noção
de controle em rede. Esta noção define o montante total de valor econômico
sobre a qual um agente tem influência.
O modelo analisa o rendimento operacional e o valor
econômico das corporações, detalha as tomadas mútuas de participação em ações (mutual cross-shareholdings)
identificando as unidades mais fortemente conectadas dentro da rede. “Este tipo
de estruturas, até hoje observado apenas em pequenas amostras, tem explicações
tais como estratégias de proteção contra tomadas de controle (anti-takeover strategies), redução de
custos de transação, compartilhamento de riscos, aumento de confiança e de
grupos de interesse. Qual que seja a sua origem, no entanto, fragiliza a
competição de mercado... Como resultado, cerca de ¾ da propriedade das firmas
no núcleo ficam nas mãos de firmas do próprio núcleo. Em outras palavras,
trata-se de um grupo fortemente estruturado (tightly-nit) de corporações que cumulativamente detêm a maior parte
das participações umas nas outras”. (5)
Este mapeamento leva por sua vez à análise da
concentração do controle. A primeira vista, sendo firmas abertas com ações no
mercado, imagina-se um grau relativamente distribuído também do poder de
controle. O estudo buscou “quão concentrado é este controle, e quem são os que
detêm maior controle no topo”. Isto é uma inovação relativamente aos numerosos
estudos anteriores que mediram a concentração de riqueza e de renda. Segundo os
autores, não há estimativas quantitativas anteriores sobre o controle. O
cálculo consistiu em identificar qual a fração de atores no topo que detém mais
de 80% do controle de toda a rede. Os resultados são fortes: “Encontramos que
apenas 737 dos principais atores (top-holders)
acumulam 80% do controle sobre o valor de todas as empresas transnacionais
(ETN)... Isto significa que o controle em rede (network control) é distribuído de maneira muito mais desigual do
que a riqueza. Em particular, os atores no topo detêm um controle dez vezes
maior do que o que poderia se esperar baseado na sua riqueza.”(6)
Combinando o poder de controle dos atores no topo (top ranked actors) com as suas
interconexões, “encontramos que, apesar de sua pequena dimensão, o núcleo detém
coletivamente uma ampla fração do controle total da rede. No detalhe, quase
4/10 do controle sobre o valor econômico das ETNs do mundo, através de uma teia
complicada de relações de propriedade, está nas mãos de um grupo de 147 ETNs do
núcleo, que detém quase pleno controle sobre si mesmo. Os atores do topo dentro
do núcleo podem assim ser considerados como uma “super-entidade” na rede global
das corporações. Um fato adicional relevante neste ponto é que ¾ do núcleo são
intermediários financeiros.”
Os números em si são muito impressionantes, e estão
gerando impacto no mundo científico, e vão repercutir inevitavelmente no mundo
político. Os dados não só confirmam como agravam as afirmações dos movimentos
de protesto que se referem ao 1% que brinca com os recursos dos outros 99%. O
New Scientist reproduz o comentário de um dos pesquisadores, Glattfelder, que
resume a questão: “Com efeito, menos de 1% das empresas consegue controlar 40% de
toda a rede”. E a maioria são instituições financeiras, entre as quais Barclays
Bank, JPMorgan Chase&Co, Goldman Sachs e semelhantes.
Andy Haldane, diretor executivo de estabilidade
financeira no Bank of England em Londres, comenta que o estudo do ETH “nos deu
uma visão instigante do melhor dos mundos para as finanças...Uma análise como a
da ‘rede que conduz o mundo’ é bem vinda porque representa um salto para
frente. Um ingrediente chave para o sucesso em outras áreas tem sido uma
linguagem comum e acesso compartilhado de dados. No presente momento, as
finanças não dispõem de nenhum dos dois.” Haldane também comenta a enorme
escala do problema: “O crescimento em certos mercados e instrumentos
financeiros tem ultrapassado de longe a lei de Moore que previu que o poder dos
computadores dobraria a cada 8 meses. O estoque de contratos financeiros
emitidos (outstanding financial
contracts) atinge agora cerca de 14 vezes o PIB anual global”.
Algumas implicações são bastante evidentes. Assim,
ainda que na avaliação de alguns analistas, citados pelo New Scientist, as
empresas se comprem umas as outras por razões de negócios e não para dominar o
mundo, não ver a conexão entre esta concentração de poder econômico e o poder
político constitui evidente falta de realismo.
Quando numerosos países, a partir dos anos Reagan e Thatcher, reduziram
os impostos sobre os ricos, lançando as bases do agravamento recente da
desigualdade planetária, não há dúvidas quanto ao poder político por trás das
iniciativas. A lei recentemente passada nos Estados Unidos que libera o
financiamento de campanhas eleitorais por corporações tem implicações
igualmente evidentes. O desmantelamento das leis que obrigavam as
instituições financeiras a fornecer informações e que regulavam as suas
atividades passa a ter origens claras.
Outra conclusão importante refere-se à fragilidade
sistêmica que geramos na economia mundial. Quando há milhões de empresas, há
concorrência real, ninguém consegue “fazer” o mercado, ditar os preços, e muito
menos ditar o uso dos recursos públicos. Esses desequilíbrios se ajustam com
inúmeras alterações pontuais, assegurando uma certa resiliência sistêmica. Com
a escalada atual do poder corporativo, as oscilações adquirem outra dimensão.
Por exemplo, com os derivativos em crise, boa parte dos capitais especulativos
se reorientou para commodities, levando a fortes aumentos de preços,
frequentemente atribuídos de maneira simplista ao aumendo da demanda da China
por matérias primas. A volatilidde dos preços de petróleo, em particular, está
diretamente conectada a estas estruturas de poder.
Os autores trazem também implicações para o controle
dos trustes, já que estas políticas operam apenas no plano nacional:
“Instituições antitruste ao redor do mundo acompanham de perto estruturas
complexas de propriedade dentro das suas fronteiras nacionais. O fato de series
de dados internacionais bem como métodos de estudo de redes amplas terem se
tornado acessíveis apenas recentemente, pode explicar como esta descoberta não
tenha sido notada durante tanto tempo”(7) Em termos claros, estas corporações
atuam no mundo, enquanto as instâncias reguladoras estão fragmentadas em 194
países, sem contar a colaboração dos paraisos fiscais.
Outra implicação é a instabilidade financeira sistêmica
gerada. Estamos acostumados a dizer que os grandes grupos financeiros são
demasiado grandes para quebrar. Ao ver como estão interconectados, a imagem
muda, é o sistema que é grande e poderoso demais para que não sejamos todos
obrigados a manter os seus privilégios. “Trabalhos recentes têm mostrado que
quando uma rede financeira é muito densamente conectada fica sujeita ao risco
sistêmico. Com efeito, enquanto em bons tempos a rede parece robusta, em tempos
ruins as empresas entram em desespero simultaneamente. Esta característica de
‘dois gumes’ foi constatada durante o recente caos financeiro” (7).
Ponto chave, os autores apontam para o efeito de poder
do sistema financeiro sobre as outras áreas corporativas. “De acordo com alguns
argumentos teóricos, em geral, as instituições financeiras não investem em
participações acionárias para exercer controle. No entanto, há também evidência
empírica do oposto. Os nossos resultados mostram que, globalmente, os atores do
topo estão no mínimo em posição de exercer considerável controle, seja
formalmente (por exemplo votando em reuniões de acionistas ou de conselhos de
administração) ou através de negociações informais”. (8)
Finalmente, os autores abordam a questão óbvia do
clube dos super-ricos: “Do ponto de vista
empírico, uma estrutura em “gravata borboleta” com um núcleo muito pequeno e
influente constitui uma nova observação no estudo de redes complexas. Supomos
que possa estar presente em outros tipos de redes onde mecanismos de
“ricos-ficam-mais-ricos” (rich-get-richer)
funcionam... O fato do núcleo estar tão densamente conectado poderia ser visto
como uma generalização do fenômeno de clube dos ricos (rich-club phenomenon).” (8) A presença esmagadora dos grupos
europeus e americanos neste universo sem dúvida também ajuda nas articulações e
acentua os desequilíbrios.
Conclusões gerais a se tirar? Não faltam na internet
comentários de que o fato de serem poucos não significa grande coisa. Na minha
análise, é óbvio que se trata sim de um clube de ricos, e de muito ricos, que
se apropriam de recursos produzidos pela sociedade em proporções inteiramente
desproporcionais relativamente ao que produzem. Trata-se também de pessoas que
controlam a aplicação de gigantescos recursos, muito mais do que a sua
capacidade de gestão e de aplicação racional. Um efeito mais amplo é a
tendência de uma dominação geral dos sistemas especulativos sobre os sistemas
produtivos. As empresas efetivamente produtoras de bens e serviços úteis à
sociedade teriam todo interesse em contribuir para um sistema mais inteligente
de alocação de recursos, pois são em boa parte vítimas indiretas do processo.
Neste sentido, a pesquisa do ETH aponta para uma deformação estrutural do
sistema, e que terá em algum momento de ser enfrentada.
E quanto ao que tanto preocupa as pessoas, a
conspiração? A grande realidade que sobressai da pesquisa, é que nenhuma
conspiração é necessária. Ao estarem articulados em rede, e com um número tão
diminuto de pessoas no topo, não há nada que não se resolva no campo de golfe
no fim de semana. Esta rede de contatos pessoais é de enorme relevância. Mas
sobretudo, sempre que os interesses convergem, não é necessária nenhuma
conspiração para que os defendam solidariamente, como na batalha já mencionada
para se reduzir os impostos que pagam os muito ricos, ou para se evitar taxação
sobre transações financeiras, ou ainda para evitar o controle dos paraísos
fiscais. O resultado é esta dupla dinãmica de intervenção organizada para a
proteção dos interesses sistêmicos, resultando em corporativismo poderoso, e o
caos competitivo que trava qualquer organização sistêmica racional. gigantismo que abraça muito mais recursos do
que a capacidade de gestão. Demasiado fechado e articulado para ser regulado
por mecanismos de mercado, poderoso demais para ser regulado por governos
eleitos, incapaz de administrar os gigantescos volumes de recursos que
controla, o sistema financeiro mundial gira solto, jogando com valores que
representam cerca de 14 vezes o PIB mundial.
O caos financeiro planetário, em última instância, tem
uma origem bastante clara, de poucos atores. No pânico mundial gerado pela
crise, debatem-se as políticas de austeridade, as dívidas públicas, a irresponsabilidade
dos governos, deixando na sombra o ator principal, as instituições de
intermediação financeira. No inicio do pânico da crise financeira, em 2008, a
publicação do FMI Finance &
Development estampou na capa em letras garrafais a pergunta “Who’s in charge?”, insinuando que
ninguém está coordenando nada. Para o bem ou para o mal, a pergunta está
respondida.
O estudo do ETH abriu uma janela importante para a
abordagem científica do poder global das corporações, com implicações óbvias
para as ciências econômicas, políticas, sociais, de relações internacionais e
outras. A verdade é que temos ignorado o elefante que está no centro da
sala.