terça-feira, 6 de setembro de 2016

A água declarada direito humano essencial pela Assembleia Geral da ONU, em julho de 2010, vem sendo alvo de corporações que procuram dela se apropriar. Há casos de resistência civil, porém. Entre lutas importantes para religar a economia ao bem comum, uma das mais significativas foi a Guerra pela Água, em Cochabamba (Bolívia).


Coluna EMPRESA-CIDADÃ
Quarta-feira, 7 de setembro de 2016

Paulo Márcio de Mello*


“El agua es nuestra...” (II)
O Aquífero Guarani Ameaçado - II

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Em 1996, o Banco Mundial prometeu àquela municipalidade boliviana um empréstimo de US$ 14 milhões, para expandir o serviço de água. O Banco Mundial, tão bonzinho, condicionou o empréstimo à privatização do fornecimento da água da cidade.

Em setembro de 1999, em um processo silencioso, a água de Cochabamba foi arrendada, até 2039, para uma nova empresa chamada Aguas del Tunari. Logo se identificou que se tratava de testa de ferro da gigantesca corporação Bechtel (www.bechtel.com), da Califórnia, estado norte-americano com vastas áreas desérticas. O contrato assegurava o lucro assombroso de 16%, capitalizados a cada um dos 40 anos contratados!

A resistência popular foi se organizando, sob a denominação de La Coordinadora para a Defesa da Água e da Vida. A liderança era composta por representantes do sindicato dos trabalhadores de uma fábrica local, irrigadores, fazendeiros, grupos ambientalistas, economistas, alguns membros do Congresso e de organizações populares

Apesar de manifestações de protesto, em janeiro de 2000, a Bechtel aplicou um tarifaço de 200% sobre o serviço de água. A população reagiu com uma greve geral de três dias. Uma faixa foi fixada na sede provisória de La Coordinadora, anunciando “El Agua es Nuestra, Carajo”!

A população então deixou de recolher a tarifa de água e se manifestou publicamente. O governo reagiu com o uso violento de tropas, trazidas de outras regiões, para que não houvesse identidade entre as partes, dando início a uma ebulição que parou novamente Cochabamba, resultando na renúncia do governador, prisões, lei marcial, censura, pressão internacional sobre o CEO da Bechtel, Riley Bechtel e no assassinato do jovem Victor Hugo Daza.

Até que o governo central capitulou, anunciando o cancelamento do contrato e a fuga do país dos executivos da Bechtel. La Coordinadora e o governo indicaram os dirigentes da nova companhia de água de Cochabamba, SEMAPA.

Pareciam ter chegado a um final feliz, mas para a Bechtel ainda havia mais osso a roer. Em novembro de 2001, a multinacional da água reiniciou a guerra, ao apresentar uma demanda de US$25 milhões contra a Bolívia, através do Banco Mundial, a mesma instituição que forçou a privatização.

Uma vez mais, a resistência organizada inibiu a investida da Bechtel. Em agosto de 2002, lideranças populares de 41 países apresentaram a Petição Internacional de Cidadãos ao Banco Mundial, requerendo transparência nas decisões.

Pragmático, o Banco Mundial não prosseguiu com o processo, possivelmente percebendo que o mesmo mecanismo acionado pela Bechtel contra a Bolívia poderia ser mobilizado por outras empresas, buscando indenizações por leis ambientais, sanitárias ou trabalhistas, a pretexto de derrubar barreiras ao livre comércio.

O Brasil, país rico em água, com aquíferos significativos, como O Guarani (no Centro Sul) e Alter do Chão (na Amazônia), também apresenta registros de luta por este direito fundamental, caso da Campanha da Fraternidade de 2004. Desde então, o movimento social tem procurado compensar as participações oficiais brasileiras nos Fóruns Mundiais da Água, até aqui subordinadas aos interesses que tratam a água como mais uma “commodity”.

Cochabamba, em 2010, realizou a conferência internacional que, através de uma revolucionária declaração, a Carta da Mãe Terra, consagrou a água e outros recursos naturais como sujeitos de direito, impedindo assim que seja transformada em simples mercadoria.

O Brasil apanhado por uma crise internacional para a qual não contribuiu, nem se beneficiou, corre o risco de vender, na bacia das almas, suas reservas de água doce, como as do Aquífero Guarani, em nome da sede por recursos para financiar déficits de uma política econômica que só beneficia rentistas. Dirigentes ilegítimos não faltam para isso.

Paulo Márcio de Mello*

Professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)


A coluna EMPRESA-CIDADÃ é publicada, desde 2001,
toda quarta-feira, no centenário jornal Monitor Mercantil (www.monitormercantil.com.br).
Através dela, são apresentados conceitos relativos
à responsabilidade social, à sustentabilidade e ao desenvolvimento sustentável,
casos de empreendedores e empresas, pesquisas, resenhas, editais ou agenda no assunto.

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