A Assembleia Geral das Nações Unidas declarou “o direito à água potável, limpa e segura, e ao saneamento como um direito humano que é essencial para o pleno
gozo da vida e de todos os direitos humanos”.
ColunaEmpresa-Cidadã
Quarta-feira 30 de agosto de 2016
Paulo Márcio de Mello*
La agua es nuestra - 1
O Aquífero Guarani ameaçado – 1
A resolução recebeu 122 votos a favor,
nenhum voto contra e 41 países abstiveram-se. As abstenções foram, entre
outros, da Armênia, Austrália, Áustria, Botswana, Bulgária, Canadá, Dinamarca,
Eslováquia, EUA, Grécia, Guiana, Islândia, Irlanda, Israel, Japão, Kazakhstan,
Luxemburgo, Malta, Holanda, Nova Zelândia, Polônia, República da Coreia,
República Tcheca, Romênia, Suécia, Trinidad e Tobago, Turquia, Ucrânia e Reino
Unido.
Estima-se que cerca de 1,1 bilhão de
pessoas não têm acesso à água potável (no Brasil, são cerca de 40 milhões) e
2,5 bilhões de pessoas não são atendidas por serviços de saneamento (cerca de
100 milhões de brasileiros). Em consequência, mais de duas crianças morrem a
cada minuto, por doenças de veiculação hídrica, isto é, complicações
decorrentes da falta de qualidade da água.
O investimento anual para corrigir, até
2025, a falta de saneamento no mundo, é estimado em US$ 9,5 bilhões. Este
investimento resultaria em US$ 66,5 bilhões anuais de economia em dispêndios,
hoje realizados na solução dos problemas de saúde decorrentes da falta de
saneamento e que, a cada ano, subtraem 5 bilhões de dias de trabalho e 443
milhões de dias de aula. Ou seja, a cada US$ 1 investido em saneamento,
retornariam outros US$ 7.
A resolução da ONU, apesar de discorrer
sobre o óbvio, a água como direito fundamental, fortalece a discussão sobre a
transformação da água em mercadoria, uma “commodity”.
O modelo econômico obsessivamente
consumista e que ameaça com a privatização de fontes de água, mananciais,
barragens e hidrovias, em escala mundial, é assim questionado. A insegurança
hídrica dele resultante é questionada também no comprometimento da
potabilidade, em consequência da emissão de efluentes e disposição inadequada
de resíduos, caso recente e dramático do Rio Doce, praticamente extinto pela
irresponsabilidade de empresas mineradoras (Samarco, Vale e BHP Billington,
esta uma corporação multinacional).
A indisponibilidade de água para tamanha
população, no entanto, resulta também do mau uso, representando mais do que
mera disponibilização de “recursos financeiros, capacitação e tecnologia,
através de ajuda e cooperação internacional, em particular aos países em
desenvolvimento” como prevê a resolução, em seu artigo segundo.
Cerca de 70% do consumo total de água é
para o uso agropecuário, onde a substituição das formas onerosas de
abastecimento, como a dos pivôs centrais, por sistemas mais adequados de
irrigação (canaletas e gotejamento, por exemplo) esbarra em interesses políticos
e nos resquícios autoritários do agronegócio, sucessores das “plantations”,
com seus coronéis congelados no século XVII e XVIII. O consumo pessoal,
frequentemente acusado de desperdício, responde por apenas 2% do consumo total.
Outras formas menos evidentes de
privatização deste direito fundamental, mas tão importantes quanto, estão
representadas pela extração de madeira de florestas ou pela conversão de
florestas para a agricultura ou para a criação de gado em grande escala. São
casos também da mineração e da exploração de petróleo, na medida em que os
produtos químicos usados ou liberados nestas atividades, interferem na
disponibilidade de água potável.
Outras formas de apropriação privada
derivam de reflorestamentos econômicos, que consomem grandes quantidades
diárias de água ou do resfriamento e congelamento requerido na comercialização
de carnes.
Outra significativa forma de preservar
as reservas de água doce existentes corresponde aos aquíferos. Brasil, Uruguai,
Paraguai e Argentina compartilham o Aquífero Guarani, reservatório colossal de
águas subterrâneas, geologicamente formado por basalto, derramado nos períodos
Triássico, Jurássico e Cretáceo Inferior, o que significa algo formado por 200
milhões a 130 milhões de anos.
As reservas permanentes de água doce do
Aquífero Guarani são da ordem de 45.000km³. Estima-se que o potencial de
exploração sem riscos de suas reservas seja de 40km³ anuais. Hoje, a maior
ameaça ao Aquífero Guarani deriva da política econômica, com o risco de
privatização das reservas de água e suas consequências, como se verá na
continuidade desta coluna.
O modo de produção capitalista
distancia-se do sistema ambiental, exigindo de governos, instituições,
comunidades, universidades e agentes econômicos a gestão democrática das
externalidades negativas, inerentes a uma sociedade baseada no consumo
obsessivo e na consequente pressão sobre os recursos naturais.
Nenhuma atividade econômica que venha a
comprometer os recursos hídricos pode mais ser aceita e já há registros de
lutas contra a privatização deste bem comum, herança do planeta e direito
fundamental do Homem. É o caso da “Guerra pela Água”, iniciada em 1999, que
veremos na próxima edição.
*Paulo Márcio de Mello
paulomm@paulomm.pro.br
Professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).
Nenhum comentário:
Postar um comentário