Fé e lucro
Duas empresas levaram a Suprema Corte dos EUA a decisões
que poderão acarretar mudanças radicais nos procedimentos das empresas
comerciais norte americanas com fins lucrativos.
blog do professor paulo márcio
economia&arte
Quarta-feira, 2 de julho de 2014
Coluna EMPRESA-CIDADÃ
Paulo Márcio de Mello*
u A
Hobby Lobby é uma rede de 600 lojas de trabalhos artesanais, criada em Oklahoma
(EUA), em 1972, distribuída por 47 dos 50 estados norte americanos, com
faturamento anual de US$ 3 bilhões. Nas lojas ouve-se música evangélica, não
abrem aos domingos, e 10% do lucro é doado para obras de caridade. Seu
presidente, Steve Green, criou um museu da Bíblia em 2007, em Washington, que
abriga uma coleção de textos religiosos.
u A
Conestoga Wood Specialties, criada pelos irmãos Norman e Sam Hahn, em Lancaster
County, Pennsylvania, produz artefatos e utilidades de madeira. Os irmãos foram
então desafiados por uma empresa de construção civil a instalar uma cozinha em
um dia. Aceitaram e excederam o desafio, tornando-se, em troca, fornecedores
exclusivos da empresa desafiante e, com o tempo, os líderes mundiais em
gabinetes personalizados.
u Estas
empresas levaram a Suprema Corte dos EUA a uma decisão emblemática, que poderá
acarretar mudanças radicais nos procedimentos das empresas comerciais com fins
lucrativos norte americanas, arguindo uma disposição do Patient Protection and
Affordable Care Act (PPACA), frequentemente chamado de Affordable Care Act
(ACA), ou “Obamacare”, o estatuto legal de 23 de março de 2010 que, junto ao
Health Care and Education Reconciliation Act, representa o mais amplo programa
do sistema de atenção à saúde do país.
u Em
30 de junho, a Suprema Corte, por 5 votos a 4, decidiu que as corporações
demandadas pelas famílias de trabalhadores por cobertura de meios
contraceptivos, conforme dispõe o ACA (ou “Obamacare”) estão desobrigadas de
atende-las. Entendeu a Suprema Corte que o disposto nesta lei viola outra lei federal,
de proteção à liberdade religiosa.
u A
juíza Ruth Bader Ginsburg, contrária à decisão final da Corte, criticou a
decisão como um retrocesso radical nos direitos corporativos, pois poderá ser
aplicada por qualquer corporação em incontáveis situações. Já o juiz relator,
Samuel A. Alito Jr., argumentou que acatou a arguição por que o interesse do
governo em assegurar que todas as mulheres tenham acesso aos meios
contraceptivos pode ser alcançado por outros meios, sem violar os “direitos
religiosos das empresas”.
u Estes
dois casos, denominados Burwell v. Hobby Lobby Stores (No. 13-354) e Conestoga
Wood Specialties v. Burwell (No 13-356), deverão se desdobrar em polêmicas
sobre o papel das empresas com fins lucrativos. Ambas desafiaram o ACA com base
no Religious Freedom Restoration , de 1993, que se refere à liberdade
religiosa.
u O
juiz Samuel A. Alito Jr. afirmou que as empresas com fins lucrativos também têm
motivos religiosos para prover saúde, mas sem coloca-las em posição de
desvantagem junto à concorrência. Ele explicou por que as corporações, algumas
vezes, devem ser defendidas como se fossem pessoas. Segundo ele, uma corporação
é simplesmente uma forma de organização usada por seres humanos para atingir
fins desejados. Quando os direitos, sejam constitucionais ou legais, são
estendidos às corporações, o propósito é o de zelar pelos direitos destas
pessoas.
u A
juíza Ruth Bader Ginsburg citou pesquisa realizada pelo Instituto Guttmacher,
segundo o qual, muitas mulheres não podem assumir os meios mais efetivos de
controle da natalidade e que o questionamento ao ACA vai acentuar os casos de
gravidez indesejada e de abortos. Concluiu a juíza que a natureza das empresas
com fins lucrativos faz a diferença. Ela criticou a Corte, argumentando ter ela
esquecido-se de que as corporações existem para servir à comunidade dos que têm
fé. Corporações com fins de lucro não preenchem esta missão.
u O
governo federal argumenta que planos de saúde que incluem facilidades
contraceptivas, além de promoverem a saúde pública, asseguram a igualdade de
acesso das mulheres aos serviços de saúde.
u Quando
a Holly Dolly, em 2012, anunciou seu plano de contestar as exigências
contraceptivas contidas no ACA, seu fundador, David Green, disse que “nós não
poderíamos abandonar nossas crenças religiosas para acompanhar este governo”.
Já o juiz Samuel A. Alito Jr., em seu relatório, disse que a Holly Dolly
poderia enfrentar multas anuais de US$475 milhões, se deixasse de cumprir o
ACA.
Paulo Márcio de Mello
Professor da Universidade do Estado
do Rio de Janeiro (UERJ)
A coluna
EMPRESA-CIDADÃ é publicada, desde 2001, toda quarta-feira,
no centenário
jornal Monitor Mercantil (www.monitormercantil.com.br).
Através dela,
são apresentados casos
de empreendedores e empresas,
pesquisas, resenhas, editais ou agenda, relativos à responsabilidade social, à
sustentabilidade e ao desenvolvimento sustentável.
O conflito entre representantes de setores religiosos e a legislação parece ser comum nas democracias ocidentais. Neste caso, uma organização com fins lucrativos, com a justificativa de que a lei americana contraria seus princípios cristãos, pretende negar o direito a planos de saúde que incluam métodos contraceptivos aos seus colaboradores, no entanto este já é um direito conquistado pelo cidadão americano.
ResponderExcluirO direito à liberdade religiosa não deve ser usado como desculpa para impor a toda a sociedade os valores de determinado grupo. Portanto, uma organização que segue princípios de alguma crença/religião não deve obrigar os colaboradores a segui-los também. A empresa tem o direito de se posicionar contrária ou a favorável a uma lei, segundo seus valores, mas tem o dever de cumpri-la como todos os outros membros da sociedade.